Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Pixinguinha, Um Homem Carinhoso (2021): música e carinho

Cinebiografia de um dos mais importantes artistas de nossa história tem limitações técnicas, mas uma linda trajetória de vida de um grande artista brasileiro, que faz da obra uma experiência emocionante.

Simultaneamente à exibição do polêmico Marighella”, a cinebiografia do revolucionário baiano dirigida por Wagner Moura, o ator e cantor Seu Jorge esteve em cartaz nos cinemas brasileiros com outro filme, uma produção bem menor e menos envolta em burburinhos, mas em muitos sentidos tão importante quanto. “Pixinguinha, Um Homem Carinhoso” tem direção da experiente Denise Saraceni junto a Allan Fiterman e aborda alguns dos principais pontos da trajetória de Alfredo da Rocha Vianna Junior (1897-1973), músico carioca conhecido como Pixinguinha, numa história que mescla ficção com registros históricos do biografado.

Para quem conhece o personagem, considerado “o pai da MPB”, um dos responsáveis pela popularização do samba e de certo estilo de brasilidade no mundo, vemos na história os pontos mais famosos da trajetória do artista, como a formação do grupo Oito Batutas, que fez turnê até pela Europa, e a composição de grandes obras junto a outros astros de nossa música, como a mundialmente famosa “Carinhoso“. Ainda assim, o roteiro coescrito pela diretora junto à Manuela Dias (da novela “Amor de Mãe”) também revela detalhes preciosos da vida do biografado, como a origem de seu apelido Pixinguinha (uma história tocante, que envolve sua família e ancestralidade africana) e anedotas de sua vida, como quando ele convidou um rapaz que tentara assaltá-lo para beber em sua casa (na verdade, diz a história que foi um casal de assaltantes que acabaram indo comer na sua residência).

Paralelamente à trajetória musical de Pixinguinha, que notabilizou-se ainda cedo pelos bares e hotéis de um Rio de Janeiro extremamente racista, onde algumas pessoas brancas saíam do recinto quando viam um negro tocando, o roteiro esforça-se em contar uma história de amor que envolve o maestro a Beti, interpretada com graça por Taís Araújo. A história de Pixinguinha torna-se, então, a de um homem apaixonado, que lutava na vida para sustentar sua família e pagar as promissórias de sua casa através da arte, e que tinha um fraco pela bebida. Seu corações, porém, era gigante, ajudando os amigos com o dinheiro que recebia e colocando muitos no cenário musical.

A produção Globo Filmes e Ypearts tem evidentes limitações em reconstituir o período de época da história, dando ao filme um aspecto de novela das seis. Geralmente produções brasileiras pecam por essa deficiência de ambientação em tramas de época, o que parece ser causado por restrições orçamentárias. Isso, porém, não atrapalha a história, e para quem mora no Rio e conhece a região central da cidade, são várias as locações em conhecidos pontos da boemia carioca. Nada mais justo para um homem que era, de certa forma, uma figura das ruas.

O mais impressionante dessa história é a beleza com que esse homem se relacionava com a música, atingindo com seus sopros acordes sublimes. Pixinguinha é um dos patronos da música brasileira justamente por ter conseguido traduzir, àquela época, o melhor de nosso espírito. Sabemos, contudo, que seu estilo não representava o Brasil inteiro, esse país tão imenso e diverso, mas uma cultura que nascia especificamente na cidade do Rio de Janeiro, capital federal à época, a partir de um começo de emancipação dos negros descendentes dos escravizados trazidos para cá no período colonial. Pixinguinha é, portanto, um dos precursores de uma ideia da cultura brasileira como filha da cultura negra, africana, reconhecida pela primeira vez no mundo todo a partir de sua música.

Sua obra é, assim, eterna, um patrimônio brasileiro que merecia um filme registrando sua história para a posteridade. Desta forma, nada seria melhor do que ter um grande artista brasileiro para representá-lo. Para quem teve o privilégio de assistir a esses dois filmes nas telonas na mesma semana, ver Seu Jorge desempenhar papéis tão diversos com o mesmo nível de entrega e profundidade só reforça seu espaço entre os grandes de nossa história cinematográfica, ao lado de outros atores negros brasileiros, como Antonio Pitanga, Lázaro Ramos, Milton Gonçalves, Grande Otelo e outros. Sendo, além de um grande ator, um músico excepcional, Seu Jorge se aproxima ainda mais do biografado, mostrando-se uma escolha mais acertada para esse papel do que talvez tenha sido para “Marighella“. Uma energia muito diferente daquela que apresenta no outro filme em que interpreta o líder comunista, sua atuação em “Pixinguinha, Um Homem Carinhoso” é a luz da obra, igualmente gigante e gentil como a de Pixinguinha, dotado de uma aura potente e carinhosa.

Vinícius Volcof
@volcof

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