Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 06 de janeiro de 2022

A Mão de Deus (Netflix, 2021): poesia sobre a juventude

Com um olhar contemplativo e delicado, Paolo Sorrentino constrói uma narrativa intimista com toques de autobiografia e fantasia.

Vinte anos após a estreia de “L’uomo in più“, Paolo Sorrentino retorna à Nápoles, sua cidade natal, para levar ao espectador a sua obra mais pessoal. Disponível na Netflix, “A Mão de Deus” pode remeter ao fantástico e polêmico jogador de futebol Diego Armando Maradona, que fez sucesso inigualável no time da cidade e até hoje é tratado como um Deus, mas essa referência é parte de um enredo bem mais profundo, que percorre a juventude do próprio diretor enquanto assume liberdade para criar uma história original. A obra, registrada sob um olhar intimista e peculiar, aposta em diálogos refinados e uma fotografia de tirar o fôlego para falar sobre amores, perdas, família e destino.

Também escrito por Sorrentino, o roteiro acompanha o jovem Fabietto Schisa (Filippo Scotti) em sua jornada de (auto)descobrimento pela belíssima e agitada Nápoles dos anos 1980. Introvertido e alimentado por várias paixões, o garoto vê a sua vida tomar um novo rumo após uma grande tragédia. Partindo do pressuposto de mesclar ficção com realidade, Sorrentino estrutura aqui uma produção que, de cara, se assemelha muito ao premiado “Roma” de Alfonso Cuarón. Embora não seja tão brilhante quanto o mexicano na execução, o realizador italiano capta a essência da narrativa desenvolvida por Cuarón em 2018 ao optar por contar uma história de cunho mais particular, mas que nem por isso deixa de conversar sobre questões do cotidiano.

O diretor consegue percorrer diferentes caminhos ao longo da narrativa, passando pelos conflitos familiares — latentes em famílias com muitas pessoas —, paixões platônicas dilacerantes, a descoberta para o desejo sexual, ambições profissionais e também a relação de amor incondicional com o esporte, no caso, o futebol. A relação com todas essas questões é sempre experimentada de maneira íntima, graças à câmera sempre inserida na família, como se fosse mais um integrante. Por esse motivo, é curioso perceber como o público se torna parte daquela história, ainda que esta seja tão pessoal. Porém, é com o jovem Fabietto servindo de âncora que os acontecimentos ganham força e são potencializados.

Com um olhar curioso e uma expressão de surpresa, Fabietto se torna o responsável por nos conduzir dentro da narrativa. Filippo Scotti faz aqui um trabalho pautado pela sensibilidade, transitando do ingênuo para o amadurecimento de maneira leve, o que transforma o personagem numa figura que exala carisma e por quem nutrimos carinho. Sua expedição por Nápoles é acompanhada por coadjuvantes importantes como o veterano Toni Servillo (que protagonizou a “A Grande Beleza“) que ao lado de Teresa Saponangelo vivem os pais de Fabietto, um casal de excelente dinâmica, cuja aparência esconde intrigas. Outros personagens também recebem destaque, mas por surgirem para movimentar a história do protagonista acabam sendo subaproveitados.

Se conta com interpretações carismáticas e tocantes, outro ponto que chama a atenção é a maneira sublime com a qual o filme de Sorrentino registra a bela cidade de Nápoles. Responsável pela fotografia, Daria D’Antonio passeia com a sua câmera por ruínas, cavernas, ruas e subúrbios sem pressa, permitindo ao público contemplar cada pedacinho das locações. Esse tom observador confere à narrativa uma forma poética que se encaixa perfeitamente com os diálogos e atuações, culminando numa beleza hipnótica. “A Mão de Deus” apresenta ainda uma trilha sonora pontual para elevar a emoção e, entre música e poesia, Paolo Sorrentino constrói um de seus filmes mais belos e singulares, tanto quanto o gol marcado por Don Diego na Copa de 86.

Renato Caliman
@renato_caliman

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