Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Matrix Resurrections (2021): as emoções que humanizam a ficção

Transbordando o sentimentalismo nutrido por Lana Wachowski, o filme é uma carta de amor ao original e uma jornada extremamente apaixonada pela linguagem estabelecida pela franquia.

Quando chegou aos cinemas em 1999, a odisseia protagonizada pelo grande hacker Neo (Keanu Reeves) impressionou a muitos com sua inovadora história sobre a percepção da artificialidade da vida. Dirigido pelas irmãs Lana e Lily Wachowski, “Matrix” marcou o início de um novo patamar do cinema de ação americano, se destacando pela harmonização de sequências energizantes e questionamentos filosóficos. Destino, livre-arbítrio, a importância de simbologias e muitos outros temas transbordavam nas telonas após a icônica escolha da pílula vermelha, que iniciava uma jornada fadada a se tornar clássica. Anos depois, e com uma imagem parcialmente desgastada por duas sequências não popularmente aceitas, é com ousadia que a franquia resolve voltar às telonas, decisão suspeita em meio à cansativa reciclagem de ideias hollywoodianas. Magistral na emulação da essência de seu filme fonte, entretanto, é tranquilizador testemunhar o amor que “Matrix Resurrections” nutre por seu grande antepassado, jamais se desviando da coragem de saudar a plasticidade de sua construção imagética.

Conduzido exclusivamente por Lana, o longa parte da saturação evidente desses grandes nomes, marcas comumente esvaziadas de propósito em nome da busca regente pelo lucro. Ao reencontramos Neo, dessa vez nos deparamos com um designer de games levado a crer que os seus maiores feitos não passam de produtos de sua imaginação. O seu relacionamento com Trinity (Carrie-Anne Moss) foi completamente obliterado, resumido a flashes inexplicáveis de seu passado, e a lendária trilogia parece não passar de um passageiro produto cultural. Cabe então a um grupo de fãs saudosistas, liderados pela destemida Bugs (Jessica Henwick), ajudá-lo a, mais uma vez, relembrar quais são os limites entre a mentira e a realidade.

Incorporando a noção em torno de alguns de seus próprios erros – apesar da subjetividade dos mesmos perante o público -, é com bastante sarcasmo que o quarto capítulo da saga resolve reprisar a estrutura de seu progenitor. Assumindo essa escolha desde a sua primeira sequência – inaugurada por um reflexo em água (questionando a veracidade do que estamos vendo) dos policiais designados para capturar Trinity vinte e dois anos atrás -, a direção não tenta esconder de maneira alguma a reutilização de suas próprias ferramentas. Isso se reflete não apenas no retorno à tradicional jornada do herói protagonizada por Neo, como também resulta em uma inteligente coletânea de comentários acerca do atual estado da indústria cinematográfica, conforme exemplificam divertidos diálogos que literalmente mencionam a destruidora cobiça de estúdios como a Warner Bros. Nesse sentido, é curiosa a plasticidade das cenas de ação construídas ao longo do primeiro ato: embora extremamente claras e bem conduzidas, cortes enérgicos e constantes diminuem a nitidez de alguns movimentos e planos.

Somada à homenagem direta feita pela já mencionada primeira passagem – na qual Bugs testemunha uma distorção narrativa da primeira cena do original -, esses artifícios acabam por provocar efetivamente o espectador, usualmente perdido entre a nostalgia e a decepção com as atrações oferecidas hoje em dia. E é este o estado mental em que, pelo menos inicialmente, o protagonista se encontra.

Seja pela transposição do grandioso encontro entre Neo e Morpheus – dessa vez incorporado por um Yahya Abdul-Mateen II claramente se divertindo muito no papel – para a cabine de um banheiro, pela materialização do “coelho branco” como signo religioso tatuado por uma das personagens, ou pela fragilização dos efeitos de alguns backgrounds, são muitos os aspectos que corroboram para o novo senso de perdição do protagonista. Para além da necessidade de recuperar a sua imagem heroica, destituída pelo esvaziamento, entretanto, não demora a ficar clara a verdadeira ausência em sua vida. Conforme os contrapontos apresentados pela passagem realizada ao som da óbvia White Rabbit – orquestrada para ser a mais industrial possível -, a solidão de Neo se choca com as sugestões dos colegas que buscam desenvolver um novo jogo para evidenciar a sua única motivação: o amor nutrido por Trinity.

Junto aos inserts que reforçam ainda mais a dependência justificada que a franquia sempre teve em relação à sua iconografia – conforme a representação das memórias por meio de reprises de cenas clássicas, ou a dramatização de um salto nunca concretizado que se complementa nas palavras de Bugs -, o interessante é perceber como essa definição de objetivos não afasta o filme de sua linguagem cartunesca. Muito pelo contrário, é justamente o que o permite adentrar ainda mais essa dimensão, autorizando seu teor fantasioso.

Nesse sentido, a crença mútua cultivada entre os membros da dupla se assimila a cenas de ação ainda mais espalhafatosas, mas gradativamente melhor decupadas e preservadas na tela. Cortes abruptos não interrompem movimentos de coreografia, as partículas de explosões são celebradas em nítidos planos detalhe e, conforme coroa um diálogo perpetuado no mundo fictício além da Matrix, toda a fisicalidade supranatural daquele cosmos é respeitada.

Evidenciando assim a grande paixão que Lana Wachowski nutre pela mitologia que criou antes da virada do milênio, as falas metalinguísticas – e até confusas em certos momentos – revestem uma obra extremamente simples, movida unicamente pelos sentimentos que atribuímos ao irreal. Por trás das necessárias críticas à destituição de intenções genuínas a qual muitos têm se sujeitado, encontramos um filme apaixonado por sua própria linguagem e que consegue ainda dialogar sobre a relação tênue que esta estabelece com seus espectadores.

Se, por um lado, “Matrix Resurrections” tem em sua identidade o fruto de algumas limitações – uma vez que o filme se vê obrigado a utilizar da própria reprodução que quer criticar -, é curioso como até mesmo as suas “falhas” possuem muito a dizer. Afinal, o que nos motiva a retornar para as salas de cinema, em busca dos mesmos rostos e das mesmas estruturas? Se estamos aqui em primeiro lugar, podemos julgar Wachowski pelo desejo de retornar ao campo que a permitiu traduzir muitos de seus aspectos internos? É justamente nessas doses de autoconsciência que a obra delimita a diferenciação para com os demais blockbusters lançados atualmente. Não por acaso, “Matrix” sempre trouxe como DNA a maestria de evidenciar os códigos de sua própria linguagem, buscando, em seus procedimentos de desconstrução, a procura do verdadeiro sentido escondido por detrás de suas representações visuais.

Dessa forma, a ressurreição do título não está na reinvenção da roda. A subversão da gravidade, o existencialismo industrializado e a fisicalidade das próprias imagens são exemplos que sempre estiveram na franquia, e são quase inexistentes os conceitos nunca explorados, de alguma forma, pela sétima arte. Mas a necessidade de renascer não surge, necessariamente, da reutilização. O renascimento se faz necessário diante da desnaturação dessa iconografia fantástica, que remove quaisquer traços de significados que criadores como Lana tentam transmitir.

Seja você um Smith (Jonathan Groff) ou um membro da resistência, entretanto, nunca é tarde para acreditar no que as pílulas vermelhas representam – não em sua imagem em si, como relembra um inteligente plano em que esta se sobrepõe as luzes de um projetor. Conforme não devemos nunca esquecer, não foram os signos que fecundaram a arte em primeiro lugar, mas sim os corações que optaram por materializar as suas sensações por meio destes.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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