Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 02 de dezembro de 2021

Ataque dos Cães (Netflix, 2021): fascinante inversão do faroeste moderno

Obra de Jane Campion foge dos padrões do gênero com uma aula de construção de personagens e uma das melhores atuações da carreira de Benedict Cumberbatch.

Em “Ataque dos Cães”, lançado na Netflix, a diretora e roteirista Jane Campion (“O Piano”) foge dos padrões dos faroestes tradicionais. O filme não conta com um grande duelo, salões e perseguições contra um fora da lei. Baseada no livro de Thomas Savage, a obra se passa em 1925, na cidade de Montana, oeste dos Estados Unidos, e conta a história de Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons), irmãos que tiveram que assumir os cuidados de um rancho. A amizade entre eles começa a ficar estremecida quando George passa a se relacionar com Rose (Kirsten Dunst), que mora com o seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee).

O roteiro parte do princípio da importância da criação de uma pessoa. Com essa informação na mesa, é possível contrapor os personagens de Peter e Phil. O primeiro tem grande apreço pela arte, com o costume de desenhar e fazer flores de papel para colocar na lápide do seu pai, ainda como um processo de enfrentamento do luto. Acontece que, em pleno oeste, ser uma pessoa sensível era um grande motivador para comentários homofóbicos. Já Phil foi criado por Bronco Henry, que ensinou seus princípios com base no clássico cowboy que prefere sofrer sozinho a perder um pingo da sua figura representada pela masculinidade.

O trabalho de Kirsty Cameron (“Oeste Sem Lei”) como figurinista vira uma referência para as escolhas artísticas da diretora. Ela aproxima suas lentes no couro, na corda, nas peças de roupa, ou seja, a forma dos personagens se vestirem demonstram sobre cada personalidade, como as roupas alinhadas de Peter e a sujeira nas roupas de Phil, por exemplo. O mesmo acontece com a fotografia de Ari Wegner (“Lady Macbeth“), que cria verdadeiros quadros em alguns frames. Ela busca diversas vezes a silhueta de Phil como um cowboy, demonstrando a imagem que o próprio personagem quer passar: uma nova versão do Bronco Henry. Wegner consegue ser contemplativa com grandes planos abertos, destacando as montanhas, os vales e campos da mesma maneira que valoriza o desgaste, a poeira e todo o lado visceral daquele rancho. Além disso, é necessário enfatizar as excelentes composições de Jonny Greenwood (guitarrista da banda Radiohead, que já trabalhou anteriormente em “Sangue Negro” e “Trama Fantasma”), que busca um olhar mais introvertido se comparado com as tradicionais trilhas sonoras descendentes de Ennio Morriconne. Sua obra vai se transformando ao longo das cenas e o emocional dos personagens, criando uma montanha russa de imersão.

Cumberbatch apresenta uma das melhores interpretações da sua carreira. Ele desenvolve um jeito de falar, caminhar, como se a pessoa que o seu personagem se tornou justificasse suas grosserias. Sabendo da força do seu protagonista, Campion foca muito no rosto do ator, mostrando como ele remói fisicamente uma tristeza internalizada, mordendo os lábios, projetando o queixo para frente, olhando de canto de olho e dando bufadas com a fumaça do cigarro. Já Kirsten Dunst, que interpreta uma personagem que vê sua felicidade ser sugada pelo convívio com Phil, demonstra com perfeição uma pessoa cada vez mais abatida e decadente, utilizando a bebida como uma solução para seus problemas.

Outro destaque vai para o trabalho de Kodi Smit-McPhee. O jovem, que vive um personagem introspectivo, evita confrontar Phil, por medo de demonstrar quem realmente é. Sua personalidade retraída é apresentada por meio de um andar envergonhado, gestos tímidos e um olhar sempre com medo. Quanto a Jesse Plemons, o ator vê seu personagem perder um pouco de tempo de tela no terceiro ato, mas isso não desfaz um excelente trabalho de contraponto ao personagem de Cumberbatch. O comportamento calmo de George só ajuda a potencializar as reações caóticas de Phil.

“Ataque dos Cães” é um filme de faroeste, mas não espere o padrão do gênero para não se decepcionar. É um filme contemplativo, uma aula de construção de personagens criada por uma diretora que mantém um ritmo lento, porém hipnótico, sem deixar o espectador perder o interesse. Com um elenco inspirado, o silêncio e a reflexão são colocados a favor de uma grande história, que acaba falando mais alto do que qualquer duelo em cidade fantasma.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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