Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de dezembro de 2021

The Beatles – Get Back (Disney Plus, 2021): testemunho fabuloso

Em um trabalho irretocável, Peter Jackson reescreve a história dos Beatles e oferece o último vislumbre da maior banda da história antes de seu fim.

Os piores tipos de limite tendem a ser os que impomos a nós mesmos. Para aqueles a quem falta disciplina, estes costumam ser ou os que requerem mais comprometimento e força de vontade, ou ser limites puramente simbólicos, não tão necessários tanto assim. O primeiro tipo é o mais comum… E o mais problemático. Em “The Beatles: Get Back“, vemos o tipo de consequência que até a maior banda da história sofreu por sua falta de disciplina.

É claro, limites (ou a falta de) e ambição costumam caminhar de mãos dadas, e ambição os Beatles tinham de sobra. Em 1969, depois de três anos sem realizar shows em público, o quarteto de Liverpool resolveu que já era hora. E para marcar a ocasião, a ideia era gravar um álbum inteiro de músicas inéditas frente ao público e documentar a empreitada em um filme, com apenas três semanas para compor e ensaiar. Seriam os Beatles fazendo as pazes com o público e consigo mesmos, dando tudo de si no que prometia ser um marco na história do rock (mais um para quem já tinha tantos). A partir dali, o céu seria o limite. Se eles soubessem…

Hoje, em 2021, sabemos muito bem o que esse projeto custou aos Quatro Fabulosos e a todos nós: o fim de um sonho. Sabemos que o produto principal viria a ser o último álbum da banda, Let It Be. O que não sabíamos é que, por trás, havia muito mais além dos rumores, dos desentendimentos e da má vontade característicos de relacionamentos desgastados. Levou cinquenta anos para que boa parte do material gravado pela equipe cinematográfica de Let It Be visse a luz do dia, montado com contornos épicos por ninguém menos que Peter Jackson – que até já contou a história de quatro jovens com uma tarefa impossível antes, na trilogia “O Senhor dos Anéis“.

O trabalho de Jackson foi tão árduo quanto a própria empreitada dos Beatles (ou mesmo quanto levar o Um Anel a Mordor): ao todo, foram mais de 57 horas de gravações brutas para ele e sua equipe analisarem. Para colocar ordem na casa, a saída foi a mais simples possível, organizando o conteúdo de acordo com a data de gravação, e mostrá-lo ao público um dia por vez. Os três capítulos de quase duas horas e meia de duração podem parecer excessivos, mas não há como contar a história de Let It Be de outra forma. Em 1970, por exemplo, o documentário homônimo foi lançado sob supervisão de Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme que acompanharia o álbum idealmente, mas é pouco mais do que um amontoado de momentos ao longo de uma hora e vinte minutos.

Jackson faz bem em contextualizar a situação dos Beatles antes das gravações serem de fato exibidas. A banda ainda se recuperava da perda de Brian Epstein, empresário que tornou a banda o fenômeno que conhecemos. Ainda que jovem, Epstein era uma espécie de figura paterna para os quatro rapazes, muitas vezes impondo os limites que lhes faltava em certos momentos e os ajudando a na tomada de decisão. Sem ele, a genialidade do Beatles fica claramente à deriva. A banda até tentou resolver tudo por si própria com a criação da Apple Corps, mas “Get Back” mostra claramente a falta que Epstein fazia e o leviatã corporativo que a Apple se tornara.

A deriva fica explícita no primeiro capítulo, quando a banda se junta no estúdio de cinema em Twickenham para compor e ensaiar, enquanto Lindsay-Hogg tenta coordenar as gravações do filme. Cada membro da banda e da equipe está com a cabeça em um lugar, seja um projeto solo, seja a namorada ou até mesmo o almoço. A falta de rumo deixa os nervos ainda mais aflorados, levando George Harrison a discutir com Paul McCartney e deixar a banda. O guitarrista aceita voltar depois, e a banda decide continuar os trabalhos nos novos estúdios da Apple, na sede da empresa na Savile Row em Londres.

A mudança é gritante. Por mais que ainda estejam indecisos sobre o que fazer com a tal apresentação e o filme, os Beatles agora estão em seu habitat natural, que é o estúdio. O clima entre os quatro fica mais leve, Paul e John Lennon se tornam dois jovens brincalhões novamente e até Ringo Starr escreve uma música com a ajuda de George. As necessidades do grupo também ficam mais claras, o que os leva a convidar o tecladista Billy Preston a se juntar às sessões de gravação. Cercados de música e lutando contra o tempo, os Beatles são imbatíveis (“o melhor de nós sempre foi e sempre será quando estamos contra a parede”, já diria Paul).

Ainda que o tratamento de som e imagem seja impecável, o que impressiona é a montagem e a construção da narrativa por parte de Peter Jackson, transmitindo uma aura quase sobrenatural às habilidades da banda. A composição de Get Back, por exemplo, é quase como se a canção fosse uma entidade tentando se manifestar através de Paul, ele sendo apenas o canal. Ou Lindsay-Hogg tentando fazer a banda prestar atenção em questões burocráticas e, francamente, desimportantes se comparadas com o fato de Let It Be estar ganhando vida em seus primeiros acordes a menos de um metro dali no mesmo instante. Mesmo o famoso show da banda no telhado da sede da Apple é construído por Jackson de forma extremamente imersiva, seja acompanhando a banda ou os transeuntes na rua durante a apresentação.

Quem não conhecer a história do fim da banda pode até ficar surpreso com a energia captada por Jackson durante as últimas horas do documentário. As sementes do que viria a ser aquele fim, no entanto, ainda estão ali, como a fixação de John com o empresário Allen Klein para agenciar o grupo e a frustração de George com a falta de espaço para suas canções, mas Jackson nos faz sentir como parte daquilo em um bom momento. Mitos sobre o fim da banda também são desmentidos categoricamente, principalmente sobre Yoko Ono, mostrando os esforços de todos para que as coisas funcionem – Paul chega até a ironizar a postura da mídia sobre a situação (“será muito cômico daqui a 50 anos, ‘os Beatles terminaram pois Yoko sentou em um amplificador.'”).

Infelizmente, dali a alguns meses os desentendimentos entre os membros voltariam a aumentar, levando à contratação de Phil Spector como produtor do projeto e a alterações quase descaracterizantes nas músicas de Let It Be, e os Beatles não voltariam a trabalhar os quatro juntos depois disso. O testemunho fornecido por Jackson sobre esse último momento de calma antes da tormenta, no entanto, é uma celebração dos Quatro Fabulosos no auge de suas habilidades, e é definitivamente como eles – seja individualmente ou como banda – merecem ser lembrados pelos fãs de qualquer geração.

Julio Bardini
@juliob09

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