Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Cowboy Bebop (Netflix, 2021): um bom remix

Mesmo aquém do anime no qual se inspirou, série live-action da Netflix esbanja personalidade, carisma e inventividade.

Cowboy Bebop” chegou à Netflix com a difícil missão de honrar o clássico anime homônimo no qual se baseia. Tarefa ingrata, que já encontra em vários fãs uma pré-disposição de não curtir a nova abordagem. Ao fim dos dez episódios lançados em 2021, há poucos erros graves, mas muitos mais acertos que fazem da experiência uma divertida maratona.

A trama base é a mesma. Os caçadores de recompensa (ou cowboys, como são chamados) Spike Spiegel (John Cho) e Jet Black (Mustafa Shakir) viajam pelo sistema solar a bordo da nave Bebop, tentando capturar criminosos e descolar uma grana, que sempre está em falta. Faye Valentine (Daniella Pineda) meio que entra na tripulação sem querer e, com o cachorro Ein, as aventuras se desenrolam.

O histórico de adaptações de anime para live-action produzidos nos Estados Unidos não é bom. De “Dragon Ball Evolution” a “Death Note”, tanto é removido das obras originais que acaba descaracterizando tudo o que elas têm de cativante. Nesse quesito, esta série se destaca por tentar abraçar a estética, história, personagens e música do anime.

Visualmente, é tudo um deleite. Os cenários e naves são inventivos e distintos assim como seu predecessor, criando um mundo rico em elementos e tão vasto que dá vontade de conhecer mais sobre tudo o que acontece naquele universo. Sem contar que a direção é criativa e procura narrar as cenas colocando os pés fora da caixa. Há grande variação de ângulos e enquadramentos que realçam o clima excêntrico do seriado ao mesmo tempo que injeta charme e personalidade à tela. São certos exageros que capturam o olhar e adicionam dinamismo às boas coreografias de lutas.

Adaptações de desenhos muitas vezes procuram trazer elementos visuais para algo mais sóbrio e parecido com a realidade, mas aqui os departamentos de arte e figurinos parecem ter recebido carta branca para trazer toda a excentricidade do anime à vida.

A franquia é conhecida por sua trilha sonora de variados gêneros e alta qualidade. Pelo envolvimento do estúdio do anime nesta produção (aliás, os dubladores japoneses estão de volta), a compositora Yoko Kanno retorna a “Cowboy Bebop”, reaproveitando canções e criando 25 novas músicas que ditam os diversificados tons de várias cenas. A decisão de manter a clássica abertura Tank! é acertadíssima e a reprodução da mesma em live-action a torna “impulável”.

Quando se fala de roteiros, aí é necessária uma análise mais detalhada. Obviamente, quando uma obra de arte é transmitida por mídias diferentes, há inevitáveis mudanças. Uma delas aqui é a interação entre a tripulação. Eles são mais brincalhões uns com os outros, com zoeiras nascendo pelo conforto de fazer piadas com companheiros; no anime, as gozações acontecem, quase sempre, por acidente, quando algum personagem está com preguiça ou sem vontade de conversar a fundo, ou simplesmente confundiam o que o outro dizia.

Isso não é necessariamente um demérito, pois quem nunca viu o anime vai, com certeza, se entreter, porque já que era para ter uma abordagem diferente na maneira como eles se tratam, é tudo muito divertido, frutos de um elenco afiado e com ótima química. Cho acha o perfeito equilíbrio entre um homem com um passado que o assombra e a leveza com que se porta no presente; Pineda lida com o lado tristonho de Faye por não lembrar de sua vida até dois anos antes, mas esbanja energia ao correr atrás do que quer (embora, por vezes, o texto passe do ponto); e Shakir faz Black ter coração e dureza, sem receio de tentar se aproximar de quem gosta, mas querendo fazer os trabalhos rápida e eficientemente para poder tocar sua vida.

Mas é neste Black que se ilustra uma das falhas da série em relação ao anime. Nele, a tripulação claramente se gosta, mas não consegue reconhecer e lidar com esse sentimento. São todos muito danificados por seus passados e isso cria uma certa aura de melancolia que praticamente não existe aqui, onde parecem mais maduros em assumir como se sentem. Jet abraça e abertamente procura saber mais sobre seus companheiros. Sim, eles ainda têm fantasmas de suas vidas anteriores, mas não estão tão perturbados como na obra original.

Elementos novos são trazidos para explorar o passado de cada um, notadamente a introdução da filha de Jet e dos diferentes rumos dados à história de Spike, Vicious (Alex Hassell) e Julia (Elena Satine). Esta última, bem inferior à original, caindo na velha falha da narrativa audiovisual hollywoodiana de tratar o espectador como bocó e explicar demais as tramas propostas. Como resultado disso, Vicious deixa de ser uma figura imponente, fria e calculista para se tornar um mimado tóxico sedento por poder; Julia está mais presente na histórias, mas segue por um rumo diferente que chega a uma conclusão simplesmente bizarra e aleatória; e a indiferença de Spike perante a morte, e sua melancolia inerente perante os acontecimentos pregressos de sua vida perdem força aqui. Se não fosse pelo talento de Cho, talvez não tivesse rendido carga emocional alguma.

Então, como adaptação, há mudanças inevitáveis e outras que simplesmente não conseguem estar à altura do original. Porém, para quem nunca viu o anime, funciona tranquilamente. Mesmo diferentes, as interações são bem construídas e executadas; a trama da família de Jet fez bem ao dar mais camadas ao cowboy; e uma nova personagem do passado de Faye rende um dos melhores episódios da série.

Como um tipo de procedural, a “missão da vez” traz personagens que só aparecem por um episódio, e o live-action procura trazer histórias do anime, o que faz muito bem. Não só consegue fazer com que todos os envolvidos sejam interessantes por si só, como também explora as camadas da tripulação da Bebop. É notável como conseguiram fazer certas alterações que caíram melhor na caracterização em carne e osso desses criminosos, e ainda dar fins diferentes da série original de forma que faça sentido, mantendo, assim, a atenção de antigos fãs que não têm como ter certeza dos desfechos.

O finale em aberto deixa clara a intenção de que haja uma segunda temporada, com a introdução de um novo personagem que pode não funcionar nada bem em live-action, mas também pode ser um sucesso estrondoso. Só o futuro dirá. Há até alusões a um ótimo antagonista de “Cowboy Bebop – O Filme”, que seria uma ótima adição.

No vício hollywoodiano de mastigar os sentimentos dos personagens, a interpretação abstrata das emoções que dava vida ao anime se perde. Entretanto, o saldo é positivo. A trilha sonora recria o clima da original com louvor, o magnífico elenco interage com uma naturalidade cativante, os variados cenários representam lugares decadentes, elegantes e cheios de vida (às vezes ao mesmo tempo), a direção mantém a linguagem visual fresca a todo momento e, principalmente, é uma obra que gosta e respeita o material original. E mesmo se for o primeiro contato do espectador com este universo, vai se deparar com uma série, inegavelmente, cheia de charme e personalidade.

Bruno Passos
@passosnerds

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