Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Fundação (Apple TV+, 2021): grandiosidade pretensiosa

Com um enredo genérico e atuações fracas, a série de David S. Goyer pouco lembra a obra prima de Isaac Asimov.

O Apple TV+ é possivelmente um dos streamings com a grade mais interessante do mercado, povoado por séries como “The Morning Show“, “Ted Lasso” e “Servant“. Mas a grande joia da coroa foi logo uma das primeiras anunciadas para o serviço, e talvez justamente a mais ambiciosa: “Fundação“. Em uma época em que grandes sagas de ficção científica e fantasia são adaptadas e consumidas com rapidez estonteante nas telas grandes e pequenas, era de se surpreender que justo a maior delas, a obra máxima do gênero, ainda não tivesse ganho sua própria versão.

Mas quem dera fosse uma tarefa simples. Obra prima de Isaac Asimov, “Fundação” não é bem nem mesmo um romance, mas um conjunto de histórias publicadas em revistas de ficção científica, depois compiladas para publicação em volume único. Ainda que ambientados no mesmo universo, cada conto seguia personagens diferentes, em momentos diferentes da história – o que acarreta em contextos e perspectivas completamente diferentes. Muitos já se propuseram, de Jonathan Nolan até Roland Emmerich, mas o desafio acabou desestimulando tanto cineastas, quanto executivos. Aí entra a Apple, com a necessidade de criar um épico para chamar de seu.

A ideia de adaptar logo “Fundação” era ambiciosa na medida certa para o streaming e, se tivesse êxito, certamente o firmaria entre os grandes do mercado. O escolhido para comandar a produção foi David S. Goyer, fã confesso da obra de Asimov e roteirista conhecido por trabalhos aclamados, como “O Cavaleiro das Trevas“, e controversos, como “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça“. Sua aposta para o sucesso foi investir em visuais estonteantes e preencher os espaços entre os contos do primeiro livro. O resultado é lindo de se contemplar, mas extremamente confuso e desinteressante de se assistir.

A premissa inicial é a mesma dos livros: o acadêmico Hari Seldon (Jared Harris), pioneiro do campo da psico-história (que usa modelos matemáticos e conhecimentos de ciências sociais para determinar o comportamento de civilizações inteiras), prevê a queda do Império Galáctico e um período de 30 mil anos de trevas, caos e barbárie a seguir. Segundo ele, é possível reduzir esse período a apenas um milênio com a criação de uma Fundação que preserve o conhecimento humano e o utilize para construir um novo império. A partir daí, diversos saltos temporais relatam a expansão política e comercial da Fundação a partir do planeta Terminus, com seus líderes sempre orientados pelas previsões precisas de Seldon.

Ainda que “Fundação”, o livro, não tenha sido planejado linearmente, a dinâmica da história e seus saltos acabam se encaixando dentro do contexto maior, criando uma aura quase mística ao redor de Seldon e daqueles que levam seu trabalho adiante. Só que “Fundação”, a série, parece não ter entendido essa dinâmica, e utiliza-se desse recurso da pior forma possível, com uma desconsideração pela própria linha do tempo que beira a displicência.

Outro ponto que Goyer parece não ter entendido – ou pelo menos não se dignou a desenvolver, quem sabe -, é justamente um dos motes principais do livro. Enquanto a série trabalha excessivamente um Império em decadência em sua luta para não sucumbir, ela negligencia o que há de mais atrativo nesse universo, que é a própria Fundação em Terminus. Apesar das limitações, Asimov contou uma história atemporal sobre a criação, consolidação e expansão de regimes políticos e como estes invariavelmente tornam-se potências imperialistas. Em uma série com escopo, responsabilidade e pretensões tão grandiosas, o material original deveria funcionar para a produção como Hari Seldon funciona para a Fundação: não necessariamente um manual a ser seguido à risca, mas uma bússola de linhas gerais que foque em um destino final claro.

Ainda que tenha a mesma premissa, a série de Goyer tece um enredo genérico a partir dela, levando a maior parte da história para longe da Fundação. Personagens intrigantes nos livros, como o prefeito de Terminus e exímio estrategista Salvor Hardin (retratado na série como uma jovem esforçada interpretada por Leah Harvey), têm sua essência alterada, transformados em verdadeiros ícones predestinados. Destino quase idêntico é o de Gaal Dornick, que mal aparece em um capítulo do livro, mas torna-se peça chave em um arco que falha ao despertar qualquer curiosidade. Muito do problema de Dornick talvez esteja na atuação insegura de Lou Llobell, sintomática de um casting ineficaz que também se manifesta em outros núcleos, como no jovem imperador Cleon (Cassian Bilton). Colocá-los em cena junto a nomes consagrados, como Jared Harris e Lee Pace, só faz destacar os problemas do enredo, em vez de elevá-lo.

O único ponto forte da série é sua proeza técnica em design de produção e efeitos especiais. De fato, cada planeta e locação exerce uma influência quase imersiva sobre o espectador, podendo equiparar-se a outros clássicos da televisão como “Game of Thrones” e “Star Trek“. Tais elementos, entretanto, são muito pouco para sustentar uma obra que tem tantas pretensões.

Naturalmente, uma única temporada é pouco para trabalhar e desenvolver conceitos tão profundos – o próprio Goyer já afirmou que sua visão para a série prevê oito temporadas, incluindo também os demais romances da saga da Fundação. Infelizmente, não há como identificar se esse é o objetivo final da série, já que a primeira temporada deixa clara a intenção de priorizar reviravoltas, relacionamentos artificiais e sequências de ação desnecessárias em detrimento de uma história que pelo menos siga as linhas gerais do idealizado por Asimov.

Julio Bardini
@juliob09

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