Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 16 de novembro de 2021

Batalha Bilionária – O Caso Google Earth (Netflix, 2021): a história é escrita pelos vencedores

Baseada em eventos reais, produção expõe os bastidores do processo judicial envolvendo dois amigos idealistas contra uma das maiores empresas do mundo.

Ao contrário de tantas outras narrativas que acompanham a jornada de sucesso de visionários ambiciosos de índole questionável, a exemplo do aclamado filme “A Rede Social”, de David Fincher, e dos menos notáveis “Fome de Poder”, de John Lee Hancock, e “Jobs”, de Joshua Michael Stern, a minissérie alemã “Batalha Bilionária: O Caso Google Earth”, da Netflix, opta por trilhar o caminho inverso, partindo do ponto de vista daqueles que, embora pioneiros, se tornaram mais uma das vítimas da lógica predatória praticada pelas grandes companhias tecnológicas.

A trama segue duas linhas do tempo em paralelo. Na primeira, ambientada em Berlim na década de 1990, um grupo composto por jovens estudantes de arte e hackers ativistas, liderados pelo carismático Carsten Schlüter (Leonard Scheicher) e o brilhante e ingênuo Juri Müller (Marius Ahrendt), decidem fundar a empresa ART + COM, cujo o objetivo era mesclar arte e realidade virtual, desenvolvendo em 1993 um complexo simulador da Terra baseado em imagens de satélite e fotos aéreas, o Terravision. Já na segunda fase, situada em 2014, os eventos giram em torno da disputa de violação de patente contra o Google, no qual a dupla Schlüter e Müller, agora interpretados pelos veteranos Mark Waschke e Misel Maticevic, alegam que sua invenção foi indevidamente utilizada como base para o desenvolvimento do Google Earth, software lançado oito anos após a criação do Terravision.

Escrita e dirigida por Robert Thalheim (“À Espera de Turistas”) em parceria com o co-roteirista Oliver Ziegenbalg (“De Encontro Com a Vida”), a minissérie, de apenas quatro episódios, propõe de maneira interessante uma importante reflexão sobre a dura realidade enfrentada por pequenas startups que, diante de gigantes, são covardemente esmagadas enquanto veem suas criações serem usurpadas sem que a história lhes dê o devido crédito. Ao mesmo tempo, o enredo retrata um antigo período mais ingênuo, no qual novas tecnologias eram vistas com certo otimismo, sendo desenvolvidas e compartilhadas sobretudo em prol de um mundo melhor, ao invés de visar fortuna por meio da coleta e venda irrestrita dos dados dos usuários.

Embora o roteiro contenha diversos diálogos com termos e conceitos familiares aos geeks e programadores, a obra jamais exclui o grande público, recorrendo, sempre que necessário, a analogias bastante didáticas. Em virtude disso, a estrutura da narrativa recorre ao gênero de drama de tribunal, inserindo explicações pontuais de forma orgânica e inteligível para não comprometer o entendimento e imersão do espectador ou fazê-lo se sentir subestimado pelo evidente teor expositivo do texto.

Subvertendo as expectativas geradas em torno de uma série sobre a disputa autoral de códigos de computador, a relação entre os protagonistas, Carsten e Juri, é o alicerce central da história. Ambos, cada um à sua maneira, partilham de uma genuína paixão pelo projeto que demonstra enorme potencial para mudar o mundo. À medida que cada novo obstáculo surge, é enormemente gratificante acompanhar as soluções mirabolantes que a dupla encontra para solucioná-lo. Nesse sentido, os jovens atores Leonard Scheicher e Marius Ahrendt entregam performances tão cativantes que despertam o interesse do público em permanecer um pouco mais na rotina desses personagens tão fascinantes. Já em suas fases maduras, vividas por Mark Waschke, o enigmático Noah da série “Dark”, e Misel Maticevic, não devem em nada a suas versões mais jovens, concebendo uma carga dramática extra devido aos sentimentos de culpa e frustração que tiveram de carregar ao longo dos anos.

Infelizmente, restou pouco tempo de tela para que os demais personagens fossem desenvolvidos adequadamente. Isto posto, no papel de uma advogada dedicada, Lavinia Wilson, faz o que pode com as sérias limitações que o roteiro lhe impõe. Brian Anderson, por sua vez, consegue transitar entre um tom igualmente sedutor e ambíguo, mas um tanto caricato e maniqueísta ao término de sua breve jornada. Porém, sem dúvida, os mais prejudicados pela falta de desenvolvimento são os funcionários potencialmente promissores da ART + COM que poderiam ganhar ao menos uma ou duas linhas de diálogo a mais, trazendo outros pontos de vista.

A bela cinematografia de Henner Besuch (“Vinterrejse”) aliada à trilha sonora condizente de Uwe Bossenz e Anton Feist (ambos de “TKKG”) ajudam a elevar o nível da produção. Porém, o mesmo não pode ser dito dos figurinos elaborados por Ingken Benesch (“Natal Sob Fogo Cruzado”) e do trabalho de maquiagem de Nicola Faas (“O Dia Que Mudou o Mundo”), que apresentam execuções nada polidas e inspiradas, chegando a causar estranheza por destoar do tom sóbrio da obra.

“Batalha Bilionária: O Caso Google Earth” é uma experiência esclarecedora que, embora tome certas liberdades criativas, retrata de forma ímpar um caso real, que, assim como tantos outros, foram convenientemente varridos para debaixo do tapete a fim de encobrir as práticas anticompetitivas de uma megacorporação de bilhões de dólares que, ironicamente, até recentemente tinha o slogan “Não seja mau”.

Alan Fernandes
@alanfdes

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