Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 11 de novembro de 2021

#RapaduraRecomenda – Cowboy Bebop (1998): carregando o peso de ser um fabuloso clássico

Com o impressionante feito de mesclar inúmeros gêneros cinematográficos e musicais com resultado coeso, anime tem preciosa alma que discorre sobre a beleza das conexões humanas.

O time do estúdio Sunrise composto pelo diretor Shinichiro Watanabe, roteirista Keiko Nobumoto, designer de personagens Toshihiro Kawamoto, mechanical designer Kimitoshi Yamane e a compositora Yoko Kanno – curiosamente creditados com um pseudônimo que os representa como se fossem uma única pessoa (Hajime Yatate) – criaram um dos animes mais celebrados do Japão. “Cowboy Bebop” estreou em 1998 com 26 episódios que levam o espectador a uma jornada de variadas emoções.

A história se passa em 2071, num sistema solar colonizado pela humanidade – a Terra está praticamente inabitável devido a um acidente com um portal espacial. Como a força policial não consegue controlar o crime num espaço tão vasto, criou-se a cultura de caçadores de recompensa (também chamados de “cowboys”) para auxiliar na captura de meliantes.

A dupla de cowboys da nave Bebop, Spike Spiegel (Kôichi Yamadera) e Jet Black (Unshô Ishizuka) percorre o espaço tentando conseguir alguma grana, geralmente falhando. Eles logo recebem as inusitadas adições do cachorro Ein, a golpista Faye Valentine (Megumi Hayashibara) e a jovem e excêntrica hacker Ed (Aoi Tada).

Praticamente um procedural, cada episódio mostra caçadas que servem como gatilhos narrativos para que a obra explore o que importa: os fantasmas dos passados desses personagens e como eles não sabem se livrar deles. Conforme a série avança, flashbacks bem mesclados com diálogos mostram o passado de Jet como policial e seus motivos para deixar a força; a amnésia de Faye, que acordou de criogenia e não se lembra de quem era; o abandono parental de Ed pelo pai relapso; e a rivalidade letal entre Spike e Vicious (Norio Wakamoto), antigos parceiros na organização criminosa conhecida como Sindicato Dragão Vermelho.

O anime se destaca por incorporar elementos de inúmeros gêneros distintos de forma orgânica. De cara, já se nota ficção científica, filmes noir e westerns, mas há elementos de comédia, romance, suspense e tragédia. São decisões criativas ousadas, que impressionam pela sensação de unidade que consegue transmitir, e essas diferentes linguagens cinematográficas são usadas com excelência para abordar diferentes emoções.

Há muitas referências a ícones da cultura pop. “Alien – O Oitavo Passageiro”, “Shaft”, “A Balada do Pistoleiro”, “Star Trek”, “2001: Uma Odisseia no Espaço” e até Bruce Lee são apenas alguns exemplos. As homenagens continuam nos títulos de alguns episódios, que são famosas canções de rock, como Honky Tonk Women dos Rolling Stones e Toys in the Attic, do Aerosmith. Isso leva à fenomenal trilha sonora. É praticamente um sacrilégio falar de “Cowboy Bebop” e não a mencionar.

Kanno montou uma banda chamada Seatbelts, com músicos de jazz e blues de diferentes países para compor uma miríade de álbuns que, além dos gêneros já citados, contêm canções de rock, funk, pop e country. Há músicas empolgantes, sofridas, tocantes, sufocantes, inspiradoras e divertidas. Mesmo sem entender a letra, é impossível não dançar ao som de Want It All Back ou não segurar o coração ouvindo Blue. A abertura Tank! e o encerramento The Real Folk Blues figuram em qualquer lista de melhores hits de anime.

Essa mixtape de gêneros musicais e cinematográficos não é gratuita. Ela dá à série a capacidade de explorar mais camadas emocionais do que se encontra normalmente em artes audiovisuais. É algo ímpar, difícil de ser reproduzido, e que captura nuances de sentimentos que, por fim, espelham lutas e esperanças de qualquer ser humano.

Nesta vida, tudo é caótico. Há dias leves, cheios de brincadeiras; há dias melancólicos, onde traumas e sentimentos mal resolvidos tomam conta; há os agoniantes; os engraçados; há dias que pegam de surpresa e tudo acontece ao mesmo tempo. Como os dias, os episódios variam. Há alguns simplesmente hilários (o do cogumelo é de um humor visual magnífico), mas também outros em que a linguagem de filmes de terror toma conta, e ainda outros onde permeia o teor tristonho de quem procura fechar buracos na alma oriundos do passado, com um tom desesperançoso que corta o coração e conecta o espectador aos personagens.

Existencialista, o anime discorre sobre solidão e afeto. Ao não conseguirem se libertar do passado que os assombra, os personagens não têm arcos clássicos. Não há aquela superação e aprendizado que resulta numa catarse de amadurecimento e libertação. Aos poucos, o roteiro descasca cada um, mostrando o que os levou a serem como são e como esses elementos os levam a se unir… E a se separar.

E é nessa união que reside o lado trágico da obra. Conforme o tempo passa, eles claramente passam a se importar um com o outro, mas suas amadoras formas de reconhecer e demonstrar isso os levam a perseguir esta vã esperança de alívio quanto ao que aconteceu em suas vidas. O resultado são episódios humanamente lamentosos que fogem do melodrama barato e entregam cenas e diálogos que atingem o público em locais bem reais de suas almas.

De início, pode-se ter a impressão de que o anime é sobre a ação e o humor das aventuras de caçar criminosos, mas ao fim, descobre-se que o foco é engrandecer o poder e o encanto das conexões humanas. A salvação, por assim dizer, está ali, naquela tripulação de desajustados. Resta ao espectador torcer para que percebam isso.

Nessa análise sobre o que é humanidade, a ironia reside nos próprios passados dos personagens serem os responsáveis por vários insucessos nas caçadas. Não são poucos os momentos em que se pegam entendendo o lado do caçado, geralmente alguém também tentando lidar com acontecimentos prévios, e acabam “abandonando” a captura. Mesmo fazendo o possível para transparecer que foi só o acaso, a empatia que eles conseguem ter com outros que têm lutas similares eleva a mensagem da beleza de se conectar com outra pessoa.

Caótico, esperançoso e humano, o anime tem invejáveis técnicas narrativas que mesclam elementos de numerosos gêneros para discorrer sobre humanidade. Ao fazer uso de todas as características empregadas para atingir o preciso ponto em que usa melancolia para enobrecer o que podemos fazer uns pelos outros, “Cowboy Bebop” revela ter uma alma que poucas obras de arte compartilham. É realmente um clássico especial, precioso e atemporal.

Bruno Passos
@passosnerds

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