Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Noite Passada em Soho (2021): o desperdício de um insight criativo

O novo conto de Edgar Wright encanta por sua história e pela construção visual, mas acaba danificado pela própria artificialização que tanto tenta, entre outros tópicos, criticar.

Reconhecido por uma assinatura bastante estilizada, o diretor Edgar Wright coleciona uma vasta legião de fãs que se espalham por todo o mundo. Embora tenha se destacado na condução de adaptações – caso do inesquecível “Scott Pilgrim contra o Mundo” -, o cineasta sempre chamou muita atenção através de seus roteiros originais, que exemplar atrás de exemplar encantam por sua originalidade. Ao flertar com uma narrativa sobre a sedução das imagens, entretanto, ele acaba se tornando uma vítima de seus próprios encantos.

Apaixonada pelo mundo da moda desde criança, a sonhadora Eloise (Thomasin Mckenzie) decide deixar a sua pequena cidade natal para se tornar uma grande fashion designer. Obcecada pelos anos 60, ela se prepara para uma vida dinâmica no centro de Londres, atraída pelo glamour que as suas maiores inspirações demonstravam ter. Ao se mudar para a vibrante cidade, entretanto, nem tudo parece corresponder às suas expectativas e uma série de frustrações tomam conta de sua rotina. Dedicada a persistir em meio às suas decepções, entretanto, ela abandona o cruel grupo de meninas de sua república e se muda para um antigo apartamento no centro de Soho, administrado pela curiosa Ms. Collins (Diana Rigg). A situação se acirra quando a protagonista passa a ter vívidos sonhos com a misteriosa Sandie (Anya Taylor-Joy), uma aspirante a cantora cujas decisões passam a se espelhar fortemente sobre a própria Eloise.

É essa a trama do aguardado “Noite Passada em Soho”, longa que encanta por sua construção visual e por mérito da carismática dupla de protagonistas. O primeiro devaneio de retorno ao passado, por exemplo, conquista o espectador com os brilhantes holofotes da década de 60, conduzindo aquele que assiste por uma deliciosa sequência que homenageia grandes clássicos do passado. Objetiva, ela logo estabelece a lógica da transposição de anseios oníricos, que são traduzidos de maneira encantadora por meio de luzes artificiais e truques de montagem. Passando por diferentes gêneros, que variam desde o romance adolescente até o slasher – conforme revela a extraordinária sequência em que um importante crime é testemunhado -, fica clara assim a lógica da direção de buscar uma artificialização proposital.

Por tratar, entre outros tópicos, dos choques entre essência e idealização, alertando para o perigo que as ilusões podem proporcionar, essa dualidade acaba se convertendo na grande atração apresentada em tela, instigando a plateia a testemunhar os novos artifícios a serem apresentados em prol desse contraste. Extremamente pautada no deslocamento dos elementos diegéticos – instrumentos presentes na trama, como as iluminações reais, que acabam transpondo uma dimensão de credibilidade, se misturando ao impossível -, é com tristeza, todavia, que essa proposta não demore a se esgotar, proporcionando uma experiência óbvia e bastante didática a partir de determinado segmento.

A ambição do roteiro também escrito por Wright – e que ao lado de Krysty Wilson-Cairns (“1917”) acaba incorporando também relevantes comentários acerca de subjulgamentos aos quais às mulheres acabam sendo submetidas – não se vê acompanhada no âmbito da construção imagética, que apresenta a grande maioria de suas ideias nas primeiras fantasias apresentadas e desde então aposta na reciclagem desses mesmos recursos. Embora esse caminho até se conecte, até certo ponto, com a proposta de esgotamento e artificialidade da imagem – se assumindo como algo simplificado e que busca elevar as raízes da Sétima Arte -, essa limitação se converte em obstáculo uma vez considerada a previsibilidade que estabelece sobre o comando de uma figura tão prestigiada por sua originalidade.

Desse modo, “Noite Passada Em Soho” chama a atenção com uma história eficiente e permeada por um belíssimo refinamento estético. Nas mãos de Edgar Wright, todavia, é uma pena que o filme se perca, em certo ponto, para a artificialização proposital, sendo afetado por seus próprios recursos. Portanto, a produção é um divertido conto sobre os perigos dos sonhos ilusórios, mas que infelizmente perde a chance de, assim como esses mesmos, alcançar uma escala que consiga se manter através dos tempos.

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“Noite Passada em Soho” fez parte da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e estreia em 18 de novembro nos cinemas brasileiros.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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