Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 06 de outubro de 2021

Missa da Meia-Noite (Netflix, 2021): pequeno grande conto de terror

Referenciado por um estilo de terror mais palpável, Mike Flanagan constrói mais uma vez uma história intrigante, agora sobre fanatismo e fundamentalismo.

Com produções como “A Maldição da Residência Hill” e “A Maldição da Mansão Bly“, há ainda quem pense que o talentoso Mike Flanagan seja um simples contador de histórias de fantasmas e mansões mal-assombradas. Mas o realizador vai muito além disso. O sobrenatural de Flanagan, na verdade, é apenas uma parte de uma grande engrenagem que se move com a discussão de temas bem mais profundos como a depressão, traumas, vícios, amores proibidos e traições. Em “Missa da Meia-Noite“, sua nova minissérie para a Netflix, não é diferente. Com a Igreja no centro de tudo, o escritor e diretor abraça um estilo de terror mais concreto para dialogar, de maneira intrigante e envolvente, sobre as ameaças do fanatismo e o fundamentalismo que cega os mais vulneráveis.

Depois de casas mal-assombradas e espectros, Mike Flanagan embarca para o vilarejo de Crockett, localizado numa ilha afastada. Lá, acompanhamos a chegada de Riley Flynn (Zach Gilford), antigo morador que foi tentar o sucesso na cidade, mas viu sua vida desmoronar após se envolver num acidente que matou uma garota. De volta à casa dos pais, depois de anos na prisão, em busca de um recomeço, Flynn se depara com um lugar caindo aos pedaços e uma comunidade que luta para sobreviver. No entanto, as coisas estão prestes a mudar mesmo com a chegada do padre Paul (Hamish Linklater), sacerdote carismático que traz consigo um clima de renovação e esperança para os cidadãos desacreditados, mas também alguns mistérios que prometem abalar o povoado.

Especialista em fabricar ambientes claustrofóbicos e criar personagens desconfortantes, Mike Flanagan desenvolve sua narrativa tendo como cenário uma cidade moribunda, onde a decadência está explícita nas moradias apodrecidas e sufocantes. Esse tipo de lugar, bastante comum no gênero e aqui registrado por uma fotografia fria e escura, serve para reforçar o tom ameaçador da trama. Hábil em lidar com o convencional, o diretor se destaca na hora de manipular o medo, como quando converte a igreja, um lugar de fé, num refúgio atraente e perigoso. O espaço ganha cores fortes, luz intensa e fiéis sedentos por um pouco de esperança. Mas assim como o resto, preserva suas rachaduras para deixar bem claro que ainda é uma extensão da miséria que envolve toda a cidade.

A atmosfera fica ainda mais incômoda a partir do momento em que começamos a conhecer as pessoas que habitam a ilha Crockett – e aqui vale uma menção ao casting perfeito de colaboradores recorrentes do criador. Além da atuação poderosa e contida de Linklater como o misterioso padre Paul, figuras esquisitas como a beata Beverly Keane (Samantha Sloyan em uma interpretação assustadora), o Anjo (Quinton Boisclair) e a senhora Mildred Gunning (Alex Essoe escondida por uma maquiagem pesada) surgem como peças fundamentais para provocar uma sensação de estranheza. Munidos de um texto cheio de passagens bíblicas e questionamentos existenciais, o elenco transforma a narrativa num espetáculo religioso envolvente, raivoso, reflexivo e apavorante.

Quem já viu outras obras de Flanagan, sabe que o realizador não é afeito a sustos fáceis, e em “Missa da Meia-Noite” ele se mantém fiel às suas convicções sobre como provocar medo. A câmera passeia pela mise-en-scene, embalado por uma trilha sonora pontual, a fim de deixar o espectador a par de tudo. E quando este se encontra tranquilo, e o diretor sabe o momento, então entrega um frame sinistro. Essas pílulas de horror são costumeiras ao longo da narrativa e mostram que o criador tem pleno domínio de sua obra e também de quem a assiste. No entanto, o grande terror da minissérie está presente nos diálogos ferozes, com a religião e a igreja se apresentando como ferramentas ideais para o gênero. E os monstros… Bom, esses podem ser vistos por toda a parte.

Renato Caliman
@renato_caliman

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