Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de agosto de 2021

A Lenda de Candyman (2021): as vozes que se escondem nas sombras

Honrando com maestria as raízes do terror físico, Nia DaCosta adiciona subjetividade a uma personagem interessante desde a sua criação, mas que aqui encontra maior propriedade nas mãos de novos contadores.

Desde o seu surgimento, “A Lenda de Candyman” – temido personagem popularizado pelo icônico Tony Todd – sempre representou o afastamento entre a imagem e a essência humana, mostrando como os desvios da última são comumente projetados para figuras afastadas da primeira. Nesse sentido, nada mais efetivo do que uma entidade conjurada frente ao espelho, onde enxergamos os criadores desses “monstros” que povoam o nosso imaginário.

Nem todas essas criações, entretanto, são controladas por narradores poderosos, muitos profundamente prejudicados pela dificuldade de acesso ao lugar de fala. Desse modo, é com muita sabedoria que Nia DaCosta aprimora em seu filme os dilemas raciais já presentes no longa antecessor, construindo um conto horripilante sobre o impacto que visões diferentes podem exercer sobre a consolidação da História.

Estagnado em sua carreira como artista, o pintor Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) busca novas inspirações para os seus quadros, reconhecido por suas criações de teor social. Habitante do gentrificado bairro de Cabrini-Green – deixado às traças enquanto conjunto habitacional para ser posteriormente explorado pelos mesmos empresários brancos que o criaram – ao lado da namorada e curadora Brianna Cartwright (Teyonah Parris), ele resolve explorar as origens de sua região, se aventurando a desvendar os mistérios por trás do místico Candyman. Quando decide utilizá-lo em suas obras, todavia, uma antiga maldição é restaurada, dando início a uma estranha série de assassinatos.

Através de diferentes narrações – que recontam passagens do original em ótimas animações feitas com sombras – DaCosta estabelece desde o início a sua intenção de redefinir a ótica que dita a sua trama, escrita a seis mãos ao lado de Jordan Peele e Win Rosenfeld. Se em 1992 acompanhávamos a estudante Helen Lyle (Virginia Madsen), agora acompanhamos uma vítima verdadeira do mal discriminativo que governa a região, mudando a maneira de se relacionar com os simbolismos que circundam o matador lendário. Isso, é claro, quando é a sua visão que domina a cena, não sendo incomum, em tela, os choques entre diferentes perspectivas de mundo sobre os quais a obra tanto fala.

Nesse sentido, são magnéticas as passagens que a diretora compõe, ao lado do diretor de fotografia John Guleserian, por meio do avançar da câmera, percorrendo e adentrando os diferentes cantos dos ambientes. Exemplo disso se dá em uma das sequências da galeria, na qual o movimentar pelo espaço emula a postura dos seus frequentadores, buscando reflexões e significados em cada parede que atravessa. São igualmente interessantes as transições que registram, em câmera aérea para homenagear mais uma vez o filme que originou a franquia, o alto dos arranhas céus erguidos pela força humana, registrando-os de cabeça para baixo. É como se a direção questionasse essas estruturas erguidas para ocultar anos de descaso, desafiando as rígidas estruturas que continuamos construindo para tentar controlar a natureza, da qual apenas nos afastamos.

Indo além, esse cuidado em relação ao olhar simbólico também se apresenta na construção dos ataques violentos, que mesclam o uso do espelho como objeto cênico e o aproveitamento do extracampo (aquilo que não é visto na tela). Tais recursos constituem não só intensas sequências visuais – que como poucas fizeram nos últimos anos, transmitem uma tensão incomparável – mas também reforçam a ideia de que os espectros que nos atormentam são frutos de nossa própria índole, nos conduzindo à externalização dos traços que resistimos em aceitar em nós mesmos. E enquanto alguns encontram na expressão artística uma forma de se conciliar consigo mesmos, para outros certas intervenções não são o suficiente, reduzidas a meros esboços de incômodos e sofrimento – esse último, no caso da produção, bastante literal.

Essa lógica da subjetividade diante da arte dialoga muito bem com a trajetória de Anthony, figura que tenta se encontrar através de seus pincéis, buscando se distanciar dos rostos distorcidos que passam a compor sua coleção sobre telas brancas. Se para ele o fazer artístico atua como estratégia para a liberação de traumas geracionais, permitindo a exploração de raízes sobre as quais sabe muito pouco, os demais não conseguem enxergá-lo com a mesma sensibilidade, distorcendo as suas intenções a cada palavra pendendo à falta de interpretação. Tal mecanismo de deturpação por meio de reproduções – assim como o ritual de evocação do próprio Candyman, disseminado ao longo do filme – é lindamente traduzido no uso da profundidade de campo, que em muitos quadros emprega a repetição de objetos cênicos para aprofundar espaços e afastar personagens de seu merecido primeiro plano.

A incapacidade de se enfrentar certos traumas se torna um tema de ainda maior importância quando considerado o arco de Brianna, figura perseguida por um demônio do passado que tenta, sem sucesso aparente, exorcizar através da arte. Embora não seja diretamente afetada pelas mortes, ela passa então a ser atormentada pelos corpos que passam a se disseminar, lembretes do que o manifestar artístico pode se tornar quando desconectado de motivações verdadeiras – uma carcaça vazia e grotesca. Esse recurso, além disso, funciona como uma grande honraria às raízes do gênero slasher, que sempre utilizou a deformação corporal típica do body horror como metáfora para a perda da própria natureza.

Finalmente, é justo mencionar também como as temáticas raciais escalonam para um desfecho bastante carregado, que representa muito bem a transição do teatro de sombras, proposto desde o início, para uma representação mais visual e explícita, mostrando que infelizmente certas fobias e inexplicáveis disfunções sociais não existem apenas em subtexto. Assim como a importante presença da personagem de Colman Domingo, que apesar de muito interessante parece mais contida do que deveria ser, algumas resoluções, infelizmente, contrastam com a ambiguidade proposta durante a maior parte da experiência – embora o subgênero aqui explorado permita entradas mais literais – e poderiam ser beneficiadas por um pequeno aumento da duração do projeto.

Reconfigurando o mistério de Candyman para o universo dos artistas e, principalmente, daqueles que realmente são sujeitados a viver nas sombras, o longa é uma excelente modernização de um dos “monstros” da Sétima Arte recente que sempre esteve envolvido por temáticas de extrema importância. Hábil na construção de sequências arrepiantes, Nia DaCosta demonstra um grande domínio dessa vertente mais física do terror, misturando o imagético e o sugestivo para recuperar a mitologia de uma figura muito mais alimentada pela crença do que por qualquer outra força.

Guiada pelo uso desse olhar subjetivo, a diretora contrasta, dessa forma, aqueles cujos traços negativos serão sempre mascarados pelas sombras, privilegiados por disparidades sociais, com os que são injustamente resumidos a meras caricaturas do mal, visualmente explorados pela mídia e outras forças de poder de maneira abusiva. Diferente dos protagonistas que acompanha tragicamente, entretanto, é um alívio que ela consiga vir à luz logo em seu segundo trabalho.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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