Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 06 de setembro de 2021

The White Lotus (HBO, 2021): dramédia criminal na ilha dos Lotófagos

Divertida e trágica, a série acompanha uma bricolagem de personagens profundos, confusos e insanos em férias num hotel paradisíaco no Havaí.

Uma das passagens mais notórias da “Odisséia“, o épico grego atribuído à Homero, é do desembarque de Ulisses e seus soldados numa ilha ao norte da África conhecida como Ilha dos Lotófagos, ou dos Comedores de Lótus. Conta-se no IX capítulo da saga que era hábito nessa ilha consumir as pétalas da famosa flor, que continha propriedades entorpecentes e colocava os indivíduos num estado de transe alucinógeno ou sono profundo. Foi o que aconteceu com os soldados do herói de Ítaca e seu desafio foi carregar seu séquito de volta ao navio, tendo que amarrá-los ao casco para conseguir tirá-los da ilha, embriagados e viciados que estavam com a brisa da flor.

The White Lotus“, série original da HBO, escrita pelo ator-roteirista Mike White (“Enlightened“) é uma metáfora contemporânea da lotofagia, colocando personagens memoráveis numa trama de erros com forte crítica social que, sabemos desde a primeira cena, culminará na morte de um deles. Quem e como morre é o que descobriremos ao longo dos seis excelentes episódios dessa série que chegou de surpresa arrebatando o streaming e os fãs da boa narrativa.

A trama se passa num resort paradisíaco no Havaí, para onde ricassos americanos vão de férias carregando seus problemas familiares, traumas pessoais, manias e compulsões. Lá eles conhecem e interagem de forma cada vez mais íntima com o staff do hotel, incluindo o atencioso e problemático gerente Armond (Murray Bartlett), a cuidadora holística Belinda (Natasha Rothwell) e o funcionário nativo Kai (Kekoa Kakumano), cujos antepassados foram expulsos do terreno do resort pela dominação anglo-saxã.

Embora se saiba que o fio condutor da narrativa seja trágico, o tom geral do enredo é de humor, especialmente nas interações entre staff e clientes, que vão ficando progressivamente mais confusas e violentas. Uma das melhores personagens é Tanya, em interpretação digna de prêmios para Jennifer Coolidge, excelente como uma espécie de socialite perturbada que carrega as cinzas da mãe para lá e para cá sem conseguir se desfazer dela e dos traumas que ela representa. Ao encontrar Belinda, uma terapeuta negra que se dispõe a ouvi-la como talvez ela nunca tenha sido, nasce uma amizade improvável e um processo de cura que terminará mal para uma delas.

Conforme as relações entre as personagens se aprofundam, algumas até se envolvendo sexualmente, mais e mais destacados ficam os abismos sociais, raciais e ideológicos entre eles e aí a série se torna o que realmente parece querer ser primordialmente: um forte crítica social que, entre risadas e absurdos, nos faz questionar a exploração turística desses lugares paradisíacos, frutos do colonialismo e do domínio sobre povos nativos que ali habitavam. A história, que poderia se tornar a partir daí uma verdadeira trama de terror do tipo “hotel assentado sobre um cemitério indígena hawaiano”, envereda sabiamente para uma divertida comédia de erros à la Irmãos Coen (como “Fargo“) ou Robert Altman (como “Nashville“), em que, por mais questionáveis que sejam as ações desses personagens, estamos torcendo por todos eles.

O texto é belamente escrito por Mike White, um ator coadjuvante que já havia produzido uma série própria com temática parecida, “Enlightened” também pela HBO, que foi ao ar entre 2010-2011, protagonizada por Laura Dern. Agora com o texto ainda mais maduro e numa produção maior, que conta com belíssimas fotografia e figurino, White nos oferece diálogos deliciosos entre personagens bem delineados, todos eles importantes por si mesmos e não apenas servindo à sua trama. Não vê-lo indicado aos principais prêmios da TV no próximo ano seria uma injustiça.

É assim que nos importamos pela família Mossbacher, mesmo sendo daquele tipo insuportável de burgueses. Chefiada pela executiva de sucesso Nicole (Connie Britton) e pelo menos bem sucedido Mark (Steven Zahn), que manifesta sua crise de masculinidade inicialmente com uma alergia nos testículos que evoluiu para um trauma familiar ao descobrir um segredo profundo de seu falecido pai. Além deles, as crianças e as adolescentes da família, incluindo a amiga negra Paula (Brittany O’Grady), desnudam os complexos e distúrbios dos milennials, mas também as alternativas para uma vida mais saudável à essa geração consumida pelos eletrônicos e massacrada pelos problemas do mundo. O arco do adolescente Quinn (Fred Hechinger), um dos filhos dos Mossbacher, que chega à ilha viciado em celular e videogame, mas descobre uma outra forma de vida, é uma das formas mais empáticas e sensíveis que já vi ao retratar o dramas dessa geração atual.

Outro núcleo muito importante na história é do casal Patton. Em lua de mel na ilha, o marido Shane, interpretado com uma marra infantil maravilhosa por Jake Lacy, é um milionário mimado pela mãe que fica obsessivo pelo fato de o hotel ter errado o quarto da reserva e por isso vai fazer da vida do gerente Armound um inferno, enquanto sua esposa Rachel (Alexandra Daddario) vive dias desoladores em que encara o tremendo erro que acabou de cometer se casando com esse homem.

São tantos personagens maravilhosos, tantos acontecimentos desconcertantes, tantas brigas melodramáticas que expõem o pior das relações afetivas, familiares e profissionais que eu poderia, com prazer, discorrer muito mais sobre a série. Isso sem falar na deliciosa trilha sonora original de Cristobal Tapia de Veer, cheia de efeitos pneumáticos que causam uma impressão de apneia, ou falta de ar, enquanto a trama vai nos deixado a cada episódio sentados mais na ponta da poltrona.

Na metáfora grega, os marinheiros de Ulisses ficam presos às suas próprias ilusões ao ingerirem à flor de lótus e não querer sair da ilha. Aqui, é a ilha (ou bolha) que precisa sair desses personagens, iludidos com seu próprio senso de importância ou confortáveis em sua riqueza. Como Paula observa à certa altura de sua jornada, essas pessoas, brancas e ricas, que ali estão são as mesmas que chegaram ali para conquistar. Movidas pela ganância e pelo desejo de posse, sentem que a elas tudo pertencem, ou melhor, precisam que a elas tudo pertença, para que não se sintam vazias.

A série, originalmente planejada como uma produção limitada, foi renovada para uma segunda temporada e terá o formato de antologia, contando uma história diferente, protagonizada por outros personagens, em seu próximo ano. Vamos ver se White consegue repetir a mágica de nos trazer mais uma vez um dos melhores textos que a TV produziu nesses últimos anos.

Vinícius Volcof
@volcof

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