Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 21 de julho de 2021

Edifício Gagarine (2020): quando o jovem pobre viaja ao espaço

Filme brilha ao retratar a visão de mundo de um jovem abandonado cuja única ação que pode tomar para amenizar seu sofrimento é fugir da própria realidade.

“Edifício Gagarine” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 21/07 – acesse aqui.

Quando “Edifício Gagarine” se inicia, retratando a inauguração do conjunto habitacional do título em homenagem a Yuri Gagarin, primeiro ser humano a viajar pelo espaço, jamais seria possível imaginar o que viria a seguir. O longa logo trata de saltar da alvorada ao crepúsculo do lugar, retratando a vida de outro Yuri (Alseni Bathily), um jovem órfão de pai e abandonado pela mãe, com o prédio sendo sua única representação próxima ao aconchego. Acontece que depois de anos de omissão do governo e sucateamento das periferias, o edifício será demolido. A partir daí veremos as jornadas de Yuri para lidar com isso.

As jornadas, no plural, porque o filme sempre retrata dois momentos distintos do protagonista. Na vida real, entre vários conhecidos e alguns poucos amigos de confiança, Yuri se mostra alguém acostumado com a rotina de dificuldades, almoçando na casa de vizinhos e reaproveitando sucata e itens subutilizados para “mobiliar” o seu lar. Porém, quando mergulhamos na visão do personagem, conhecemos um mundo muito mais subjetivo, onde a sua admiração pela astronomia (em especial pelo cosmonauta que deu nome a ele próprio e ao seu lar) ganha vida graças ao movimento de câmera circundando o ambiente — simulando uma gravidade zero —, além de uma forte iluminação fluorescente que estiliza ainda mais o design de produção.

A visão do garoto é, de longe, a parte mais interessante de “Edifício Gagarine”, não apenas por embarcar na imaginação do protagonista, mas também por toda a profundidade da situação retratada, afinal, aquele prédio é a vida do garoto, e ele está prestes a ruir. Isso fica bem claro, por exemplo, na sequência onde Yuri e os amigos Houssam (Jamil McCraven) e Diana (Lyna Khoudri) buscam peças e equipamentos para restaurar o que for possível do edifício antes da inspeção decisiva acontecer. Depois de certos acontecimentos, a sentença é narrada em voice over enquanto as condições precárias do local são exibidas. Quando a palavra “demolição” é proferida, a cena em tela é Yuri ofegante na janela, desesperado e sem mais opções, até que a câmera gira e vai escurecendo aos poucos. Fica mais do que claro, não só agora mas em várias outras sequências, que toda a “magia” retratada quando acompanhamos a mente de Yuri é a forma que ele encontrou de escapar da sua realidade.

Esse escapismo acaba evoluindo e dando ao protagonista um propósito. Enquanto praticamente todos os moradores do conjunto já saíram em busca de novos lares, Yuri se aproveita do vazio dos apartamentos vizinhos e começa a construir uma espécie de módulo espacial. Por vezes vemos cenas intercaladas da obra do personagem e de imagens de arquivo de verdadeiros astronautas no espaço. As transições acontecem de forma delicada, mostrando todo um cuidado da produção para não ridicularizar as ações de Yuri, pelo contrário, levando a crer que ele está pondo em prática uma inspiração na realidade, ainda que o roteiro pouco se preocupe em definir de onde vem os conhecimentos dele, ou ainda como ele consegue alguns desses materiais. Ainda que pensemos no mundo subjetivo como parte da imaginação do protagonista, por vezes outras pessoas entram naquele lugar, mostrando que ao menos a parte física é, sim, real.

Essa delicadeza mostrada pelos estreantes em roteiro e direção Fanny Liatard e Jérémy Trouilh acaba não sendo tão bem-sucedida quando a narrativa volta a acompanhar a vida real de Yuri. Além de desenvolver um relacionamento levemente desnecessário para a história, “Edifício Gagarine” ainda desenvolve algumas subtramas e personagens secundários que não levam a lugar algum. E à medida que a trama avança, a mensagem poderosa de fuga da realidade acaba se misturando com esses subplots, levando a um encerramento de altos e baixos, pra dizer o mínimo. Ainda assim, observar a visão de mundo de Yuri, jovem sem família e incapaz de deixar seu lar mesmo prestes a ser demolido, causa uma baita reflexão no público, especialmente em nossa realidade, em que bilionários passeiam pelo espaço de forma tão mais simples.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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