Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de julho de 2021

Slalom – Até o Limite (2020): a sombria face do abuso

Apesar de focar em uma narrativa comum, o retrato frio e cruel da relação abusiva entre treinador e atleta se mostra necessário em uma realidade em que cada vez mais abusadores ficam impunes.

“Slalom – Até o Limite” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 19/07 – acesse aqui.

Filmes sobre esporte costumam retratar histórias de superação, sobretudo quando focam em mostrar jovens competidores sem nenhum destaque aparente no início de suas carreiras, juntando a isso alguém que acredite no potencial e a incansável frase de vida “nunca desista dos seus sonhos”. “Slalom – Até o Limite” começa seguindo estes passos, acompanhando a jornada de Lyz Lopez (Noée Abita), uma adolescente de 15 anos em busca do sucesso no esqui. Porém, o que a diretora estreante Charlène Favier nos reserva é algo tão assustador quanto necessário, especialmente quando levamos em conta que o que ocorre com a jovem atleta é algo comum na nossa sociedade.

Para construir toda a narrativa de abusos e omissões na vida de Lyz, a diretora e roteirista alia de forma excelente a linguagem visual com a história que está sendo contada. Planos abertos fortalecem a solidão da protagonista, enquanto a câmera insistentemente fechada nos rostos dela e de seu treinador nos evocam uma possível relação se construindo. Noée Abita atua de forma surpreendente, com o semblante pesado em boa parte do tempo, fruto do esquecimento dos pais e da cobrança advinda não só da idade, mas do sonho de triunfar e se provar para todos, algo comum na idade. Já Jérémie Renier dá vida ao treinador Fred, tão nocivo quanto um predador da natureza. O técnico sabe sempre a hora certa de ser ríspido e chamar a atenção de Lyz na frente dos companheiros, como também quando adotar uma postura mais acolhedora e provocadora ao encontrá-la sozinha. Favier quer deixar claro desde sempre o que vai acontecer, para que ainda que nossa reação seja chocante, não nos esqueçamos que tudo estava na nossa cara o tempo todo.

A cobrança constante de Fred por vezes não parece tão dura, uma vez que estamos acostumados a pensar que os treinadores têm a obrigação de extrair o melhor de seus atletas. Por isso há o cuidado de mostrar todo o abuso psicológico e assédio moral até nos momentos mais calmos entre os dois, como quando Fred pede para que Lyz tire as roupas (exceto as íntimas) e faz observações sobre seu corpo. A construção da narrativa deixa claro que enquanto Lyz é forçada a tomar conta de si, algo inadmissível mas tratado com normalidade até pelas autoridades de ensino do local, Fred age de caso pensado o tempo todo, atacando uma jovem que o admira tanto pela figura de poder que ele representa, afinal só ele poderá levá-la ao sonho de triunfar no esqui, quanto pelo interesse que acaba desenvolvendo, uma vez que no meio de toda aquela solidão, alguém lhe deu atenção quando precisava.

Como esperado, o drama esportivo dá lugar a uma história sobre assédio e abuso sexual. Charlène Favier não deixa de mostrar a cena com toda crueza e rispidez que algo assim pede, embora evite mostrar algo explícito demais, afinal isso não é necessário para gerar o impacto desejado pela cena. Ao invés disso, a diretora aposta no uso de sombras ou luzes com pouca força no decorrer do filme inteiro, em mais uma tentativa de mostrar o ambiente sombrio em que Lyz está inserida, sem ninguém ao redor capaz de sequer testemunhar o seu sofrimento.

Ao tentar retratar uma realidade tão crua e despida de sentimentos bons, o grande erro da diretora talvez seja apresentar algo sem textura ou profundidade. A linguagem do cinema está bem presente nos aspectos visuais, mas não é possível sentir uma mão autoral de Favier na história. No fim, é como se a câmera estivesse o tempo todo registrando cenas da vida cotidiana, sem necessariamente haver um propósito para tal. Embora seja óbvio que o intuito é condenar o abuso, a direção parece se distanciar tanto de tudo que, em certos momentos, abre até a possibilidade para interpretações condescendentes com o treinador, o que só de imaginar essa viabilidade já é algo tenebroso.

No fim, “Slalom – Até o Limite” entrega uma história que muitos já podem ter visto, seja nos cinemas, seja quando as páginas policiais e esportivas se encontram. A densidade com que a diretora decide retratar a narrativa tem seus pontos positivos e negativos, mas a grande lição deixada é a necessidade de perceber que a realidade preocupante em que vivemos, seja a relação abusiva treinador/atleta, seja o constante abandono de jovens e adolescentes, está cada vez mais envolvida por uma escuridão que impede os abusadores de serem reconhecidos e punidos.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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