Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 18 de julho de 2021

Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta (2020): comunismo à prova

Longa candidato russo ao Oscar 2021 aponta incongruências no comunismo e propõe uma desconstrução do regime sob o ponto de vista de uma mãe em busca da filha desaparecida.

“Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 18/07 – acesse aqui.

“Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta” é um retrato frio sobre o comunismo, que usa como pano de fundo o massacre de Novocherkassk, em 1962. Durante muitos anos, a única coisa que se sabia sobre o evento era a posição oficial do governo, de que nada havia acontecido por lá. Somente muitos tempo depois, com a divulgação dos arquivos secretos da URSS, que houve a confirmação do ocorrido, juntamente com o encontro de restos mortais de jovens que perderam a vida nos protestos e foram enterrados em valas ocupadas ou mesmo em solo sem nenhuma demarcação.

É interessante notar que, uma vez que o governo tomou para si a responsabilidade de abafar, e posteriormente ocultar o caso, o diretor Andrey Konchalovskiy (“Paraíso”) decide usar isso ao seu favor para montar a narrativa da obra. Assim, subvertendo o que se espera de um longa que registra protestos da população, a todo momento estamos observando a perspectiva do próprio governo, quase sempre através da visão de Lyuda (Yuliya Vysotskaya), oficial do comitê de segurança da KGB no local e comunista fervorosa.

O que desencadeia os protestos que acabam levando ao massacre é o pesado aumento nos preços dos alimentos, que já estavam escassos, além de uma maior cobrança aos trabalhadores das fábricas. Lyuda é adepta à corrente stalinista do regime, acreditando piamente que a crise não atingiria a URSS caso o ditador ainda comandasse o país. Porém, ainda assim ela seguia confiando no Partido e nas decisões do agora líder Nikita Kruschev — mesmo que este tenha denunciado várias das atrocidades cometidas por Stalin, algo que Lyuda não crê ter acontecido. É curioso notar que, independente de qual subdivisão a pessoa seja, não existia outra coisa para se acreditar na URSS se não o comunismo. E é com essa ideia em mente que o diretor usa a personagem de Lyuda para desconstruir sua visão de mundo até então inabalável.

Não fosse suficiente presenciar a reação totalmente desproporcional do governo contra os protestantes (leia-se uma ação conjunta entre Exército e KGB, que até hoje não se sabe ao certo quem tomou a iniciativa), Lyuda descobre que sua filha pode estar entre as vítimas fatais do massacre. O sentimento inicial de raiva e a promessa de que se ela estiver viva será entregue ao partido para discipliná-la vão se diluindo de forma tão natural em preocupação e agonia que é fácil esquecer que a mesma personagem que estamos vendo estava, no início do longa, indagando que os manifestantes deveriam ser todos reprimidos e punidos.

A fotografia em preto e branco e no aspecto 4:3 ajuda não só a nos ambientar mais facilmente na época, algo já conquistado de forma magistral pela direção de arte, tão detalhista quanto o próprio roteiro, como também entrega belíssimas novas camadas de textura e contraste em momentos oportunos, como no banho de sangue sobre as ruas sendo rapidamente lavado por mangueiras para ocultar sua existência. Apesar de cuidadoso e historicamente acurado, o roteiro acaba apresentando alguns problemas de ritmo, sobretudo nas histórias secundárias, pinceladas tão rapidamente que às vezes não absorvemos a importância delas, e na solução final da obra, que embora seja inteligente e imprevisível, apresenta um desfecho rápido demais para quem acompanhou toda a jornada.

“Caros Camaradas” entrega um bom trabalho do cinema russo ao colocar o comunismo sob questionamento de forma peculiar. Ao retratar um massacre pelo espectro oposto da espetacularização e retrato comovente dos manifestantes, Konchalovskiy explicita não só as incongruências do regime, mas também a grande falta de empatia e aceitação de quem se mantinha no poder pregando a igualdade acima de tudo. E ao assimilar esse questionamento e essa desconstrução na jornada de uma mãe em busca da filha desaparecida e possivelmente presa ou morta pelo partido que ela tanto defende, o diretor atinge seu objetivo de forma seca, ríspida e esgotada, assim como a própria URSS era na época.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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