Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 17 de julho de 2021

Sangue Iorubá – Uma Jornada Musical Através de África, Brasil e Cuba (2021): que a tradição continue

Em um inusitado cruzamento de trajetórias, a cantora Gloria Estefan narra a evolução do samba brasileiro, compartilhando origens com a música cubana e suas raízes africanas.

As inquietudes de grandes artistas se transformam em obras por suas mãos, seja pela música ou pelo cinema. A proposta do documentário “Sangue Iorubá: Uma Jornada Musical Através de África, Brasil e Cuba“, distribuído no Brasil pela HBO, é ilustrar o legado africano trazido para a América colonial pelos povos escravizados e sua evolução. Na forma de ritmos, instrumentos e cerimônias, tal herança se tornou base para a expressão musical latina, em especial, a brasileira e a cubana. No entanto, o que faz deste documentário ainda mais curioso é que ele surge do mesmo impulso por propagar tradições através da arte. Introduzida pela cantora cubana e radicada norte-americana Gloria Estefan, a produção traça paralelos entre os movimentos históricos musicais e sua própria trajetória, todos marcados pela necessidade de manter vivas as raízes.

A fusão de culturas europeias e africanas gerou riquíssimas manifestações musicais na América. Porém, o destaque do documentário vai para o samba brasileiro e suas diversas vertentes. Dividida entre Bahia, Rio de Janeiro e Miami, a narrativa ilustra o surgimento do ritmo no Brasil e os fatos históricos que moldaram suas variações, enquanto acompanha a produção de um álbum em homenagem ao samba. Acontece que Gloria Estefan teve sua vida marcada pela combinação musical de suas raízes cubanas com as influências pop norte-americanas. Crescida nos Estados Unidos, ela e o companheiro Emilio Estefan Jr. foram os responsáveis pela primeira onda mundial de explosão latina nos anos 1980, exportando a mescla cultural como fator de sucesso. Dessa forma, compreender os elos originais entre Cuba e Brasil, e como a música evoluiu desde então, leva naturalmente ao desafio de readaptar suas canções à sonoridade brasileira com a colaboração de músicos como Carlinhos Brown, Laércio da Costa e Maria Rita.

De Congo, Angola e Santiago de Cuba, “Sangue Iorubá” viaja para a Lagoa do Abaeté, Praça Onze e pela quadra da escola de samba da Portela contando histórias que fazem parte da formação cultural brasileira. É fascinante ver e ouvir sobre como o samba foi moldado ao longo da história do Brasil pela política e pela resistência do povo negro. Cada segmento é pontuado por uma sequência videomusical produzida por Gloria Estefan como parte do projeto. Essas pausas ilustram o exercício de mistura sonora e entretêm como respiro entre as exposições didáticas. Por outro lado, as diferentes texturas do documentário, unindo tomadas de alta qualidade com imagens de arquivo de diferentes fontes e tipos de câmeras acabam prejudicando sua unidade. O momento que une o “dream team” do samba carioca, com intérpretes como Alcione, Jorge Aragão e Dudu Nobre, literalmente no fundo do quintal de Zeca Pagodinho, é desfavorecido por uma montagem um pouco suja, mas nada que comprometa o tanto de carisma reunido numa só mesa.

Superficialmente, esse paralelo inusitado entre a jornada pessoal e profissional de Gloria Estefan com o samba brasileiro pode parecer estranho. O documentário chega a sugerir um elo entre figuras como Tia Ciata e Carmen Miranda com as atitudes da mãe e da avó de Gloria em seus anos formativos em Miami. Porém, é verdade que os valores que movem a artista, conforme seus passos deixam implícitos, rimam muito com as forças que mantiveram o samba vivo como expressão social.  É como houvesse um impulso natural, tanto do indivíduo quanto dos grupos, de compreender as raízes para então fortalecer e reproduzir suas identidades. Documentar essa história para que ninguém a esqueça pode ser vista então quase como um dever para uma artista que construiu uma carreira celebrando misturas rítmicas e tradicionais com o contemporâneo. E mesmo com as diferenças entre caminhos e idiomas, os povos e suas vozes compartilham muito mais do que a história conta.

William Sousa
@williamsousa

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