Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de julho de 2021

Raised by Wolves (HBO Max, 2020): ficção científica que evoca boas reflexões

Série pode até trazer à memória "Prometheus", mas o criador Aaron Guzikowski e o produtor executivo Ridley Scott constroem uma obra de ficção científica mais coesa sobre os contrapontos entre fé e ciência.

Raised by Wolves” tanto se assemelha quanto se diferencia de “Prometheus“. Além da presença de Ridley Scott na produção executiva, a série disponível na HBO Max tem outros pontos em comum com o filme do universo “Alien – O 8º Passageiro“. Ambos pensam a ficção científica como um gênero capaz de levantar discussões complexas, como a origem da vida e as especulações sobre outros ambientes fora da Terra. Porém, apenas a mais recente produção explora a combinação entre ciência, filosofia e religião sem deixar um gosto amargo de frustração no espectador. E isso acontece nos fazendo pensar a respeito das contradições do ser humano como indivíduo isolado e parte de uma sociedade.

Ao longo de dez episódios, a narrativa propõe reflexões profundas acerca de temas religiosos e filosóficos que partem da imaginação futurista e distópica de uma planeta Terra devastado. A destruição foi gerada por guerras religiosas entre ateus e crentes (estes pertencentes a um povo chamado mitraico), o que exigiu da humanidade buscar em outro planeta a chance de sobreviver. Nesse panorama, dois androides recebem a missão de cuidar de crianças humanas em Kepler 22-B, um misterioso mundo distante da Terra. A tarefa é ameaçada pela chegada ao local de uma congregação de mitraicos sobreviventes.

Sob o comando de Ridley Scott, o primeiro capítulo dá o tom de como a trama será trabalhada. Por mais que existam sequências de ação de um ritmo mais intenso, a abordagem predominante é intimista e contemplativa a partir de um desenvolvimento lento que evita explicar didaticamente o universo ficcional. Há flashbacks pontuais para contextualizar o conflito religioso e a viagem para colonização de outro planeta, mas são os detalhes sutis da progressão da narrativa que estabelecem os núcleos centrais. De um lado, estão Marcus/Caleb (Travis Fimmel) e Sue/Mary (Niamh Algar), soldados ateus infiltrados entre os crentes para superar os inimigos por dentro, que se apegam ao menino Paul (Felix Jamieson) e partem para um assentamento em Kepler 22-B para salvar as crianças sob a influência dos androides. De outro, Mãe (Amanda Collin) e Pai (Abubakar Salim) são robôs programados por seu criador para educar as crianças segundo as ideias ateístas e ensiná-las a como sobreviver em um local bastante diferente, inclusive protegendo-o dos perigos do ecossistema e dos ataques dos crentes.

O confronto entre os dois segmentos escancara como a luta pela sobrevivência é marcada por diversos contrastes, paradoxos e dualidades. Se um grupo de personagens crê no poder do deus Sol para orientar os caminhos dos mitraicos, o outro defende que a razão humana deve ser o guia das ações da humanidade. À medida que Marcus/Caleb e Sue/Mary enfrentam dificuldades para reaver as crianças e Mãe e Pai lidam com os imprevistos de educar os meninos e as meninas, alguns contrapontos surgem: o que define a humanidade e os organismos artificias? A preservação da vida implica necessariamente a morte daqueles que se opõem à sua existência? A criação de uma nova sociedade pode ocorrer sem a destruição do que havia antes? O sentimento de proteção materno/paterno é inato ou construído/programado? Além disso, é interessante como o design de Kepler 22-B também simboliza tais contradições, ao combinar um assentamento realista com traços futuristas próximos (como um monólito) e a melancólica fotografia acinzentada de um mundo decadente escolhido como esperança para a humanidade.

No centro do embate entre ateus e crentes estão as crianças, símbolos de um futuro mais promissor para a espécie humana e alvos da disputa entre duas concepções de mundo (afinal, o grupo que conseguir moldar as novas gerações definirá o tipo de colônia a se formar). Embora nem todos os jovens compartilhem da mesma visão, eles atravessam jornadas que os fazem se envolver emocionalmente com os cuidados da Mãe e do Pai e se importar com o que acontece às duas figuras. As crianças podem até se constituir como um grupo unido com o passar do tempo, porém o criador da série, Aaron Guzikowski (“Os Suspeitos“), sabe destacar trajetórias individuais. Em especial, são os arcos de Campion (Winta McGrath) e Paul que mais se ressaltam por transitarem entre o ateísmo e a crença com camadas cada vez mais complexas, como quando vivenciam emoções violentas de algo que os desagrada e desconfiam da possibilidade de serem especiais dentro de uma profecia dos mitraicos.

É igualmente poderoso perceber que as várias contradições abordadas pelo roteiro preenchem a evolução narrativa das principais personagens de cada núcleo. A dinâmica estabelecida pelo casal de ateus infiltrados mistura sensações e dimensões heterogêneas, que perpassam a vingança, a empatia por Paul, a busca por uma vida melhor e as facilidades proporcionadas pela chegada a posições de poder. Quando se trata de Marcus/Caleb, sua jornada se sobressai, devido ao impacto de sua descida à loucura provocada pelo crescente fanatismo religioso que desenvolve ao atingir um lugar de maior autoridade para os crentes. Desse modo, estamos diante de um duplo paradoxo: o homem se torna aquilo que pretendia combater e os crentes depositam uma crença muito grande em uma figura humana proeminente como se esta fosse a própria divindade (algo que, de certa maneira, poderia aproximá-los do que os ateus acreditam ser uma visão de mundo adequada e pautada no próprio indivíduo).

Ainda que a dramaturgia se desenvolva pela força de muitas personagens, são os androides aqueles que atraem as atenções e potencializam os conflitos da trama. Eles apresentam características particulares – notadamente o fato de o Pai atuar com uma programação de serviços gerais e de a Mãe atuar como uma necromante reformulada para ser uma máquina de matar com senso de proteção materna -, que deveriam ser instrumentos de ação para um cientista ateu. Porém, a trajetória que possuem envolve o flerte com a religião e o desenvolvimento de emoções humanas, possibilitada pelas atuações poderosas de Amanda Collin e Abubakar Salim: Pai deixa de ser uma figura puramente robótica e fria para começar a demonstrar paixão e ciúmes pela Mãe; já a Mãe trata seu programador como um Criador praticamente divino sendo portador de uma mensagem a ser seguida dogmaticamente, e também amplia seu sentimento materno de proteção para níveis surpreendentes e compatíveis com as especulações da ficção científica.

Conforme a temporada se desenrola e as disputas entre ateus e crentes sobre a colonização do local se intensificam, somos lembrados que a rivalidade entre eles não é o único aspecto a ser temido. A impressão equivocada de que Kepler 22-B seria um planeta virgem à espera do povoamento dos recém-chegados não poderia ser ameaçadora para Mãe, Pai, Marcus/Caleb, Mary/Sue e as crianças, já que aquele cenário possui sua própria história e seus próprios habitantes originais. Não haveria nada mais simbólico, portanto, do que observar como as jornadas dos androides e do soldado ateu chegam a um momento impactante que lembra como a luta pela sobrevivência inclui também a compreensão do ambiente ao redor. Pode não ser um final de temporada esclarecedor do que tudo significa, mas é capaz de fazer pensar. E, feito isso, a ficção científica cumpriu bem seu papel.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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