Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de julho de 2021

Loki (Disney Plus, 2021): entrando em terreno instável com o melhor guia

Série começa a explorar caminhos diferentes do que conhecemos como parte da fórmula Marvel, e para isso, se aproveita do sempre confiável carisma de Tom Hiddleston, garantindo que, mesmo com desvios, o público permaneça engajado.

Dentre as primeiras séries Marvel Studios anunciadas, “Loki” pareceu, em um certo sentido, a mais segura de todas. Com o talento e carisma de Tom Hiddleston, em um papel celebrado pelos fãs há uma década, conquistar um público já rendido não seria um trabalho difícil. Um bom indício é a própria facilidade em aceitar a reintrodução do Deus da Trapaça depois do assalto do tempo em “Vingadores: Ultimato”, mesmo quando já havíamos dito nosso “último” adeus a ele em “Guerra Infinita”. A verdade é que certos personagens podem viver para sempre, podem ter várias versões de si, podem ser bons ou maus, e podem ajudar a Marvel na complicada tarefa de expandir seu (multi)verso.

Depois de ter a sorte mudada a seu favor nos eventos de um 2012 alternativo, Loki consegue pôr as mãos no Tesseract e escapar dos Vingadores. Mas logo ele é preso novamente, desta vez pela AVT (Autoridade de Variância Temporal), a “polícia do tempo”. Descobrimos que é dever desta organização manter a ordem na Linha do Tempo Sagrada, a sucessão de eventos “correta” ao longo de toda a existência, caminho este pré-determinado pelas entidades chamadas de Guardiões do Tempo. Loki, ou melhor, sua variante – nome dado a qualquer versão de um ser que desvie da Linha do Tempo Sagrada – é então levado à julgamento e seria sentenciado à morte (ou não-existência), não fosse a interferência do agente Mobius (Owen Wilson), que alega precisar dele para resolver um de seus casos.

Diferente do que vimos com o Loki “original”, que já havia sido vilão várias vezes, até ser anti-herói e depois um irmão redimido, a versão da série acaba de sair de “Os Vingadores“, com sede de poder e enraivecido pela derrota. Cheio de não-me-toques, este Loki acha que pode encontrar uma saída desta nova prisão, mas é logo confrontado pela verdade de sua própria insignificância, descobrindo que seu glorioso propósito não é nada mais do que mover a narrativa de outros personagens. Começamos então a série com um questionamento que guia grande parte de seu fio narrativo: O que é ser um Loki?

Em seus três primeiros episódios, a série tem um ritmo sem pressa, justificado por como o roteiro decide explorar a reinvenção de seu protagonista. De início, a história parece ter um objetivo bem definido. Mobius decide recrutar Loki, pois alguém está bagunçando o fluxo correto do tempo, e isso não pode ser permitido. E por que, de todas as pessoas, ele é a escolha certa para ajudar? Bom, porque quem está causando caos é uma outra variante Loki. Oficialmente no limbo da existência, e já sabendo onde seu destino iria chegar – em um pescoço quebrado nas mãos de Thanos – Loki não vê saída a não ser aceitar a missão de caçar uma versão de si mesmo.

De início, vários aspectos da série merecem elogios. Os roteiros liderados por Michael Waldron (“Rick e Morty”) conseguem ser expositivos e ainda assim interessantes, criando relações genuínas entre os personagens e conquistando a confiança do público. A direção de Kate Herron (“Sex Education”) cria uma atmosfera fiel à história que está contando, e atrai a atenção com planos criativos – com exceção das insistentes cenas de luta mal coreografadas. A trilha sonora de Natalie Holt é o elemento que mais se encaixa com a narrativa, com a mistura do teremin, sintetizadores e instrumentos nórdicos criando a precisa identidade sonora de Loki, suas variantes e a misteriosa AVT. E claro que Tom Hiddleston nunca deixa a desejar, já entregando uma performance de partir o coração no episódio de estreia. Conhecendo o personagem mais do que ninguém, ele tem a chance de desenvolvê-lo em um aspecto até então nunca abordado. Owen Wilson, através da familiaridade que emana e seu carisma, nos faz confiar em cada palavra que diz, e é um pena que acaba sendo deixado de lado com o tempo. O resto do elenco, com nomes como Wunmi Mosaku e Gugu Mbatha-Raw, não desaponta, mas da metade ao fim é com a personagem de Sophia Di Martino que Hiddleston divide a tela por maior tempo.

Ela interpreta Sylvie, a variante Loki que coloca a Linha do Tempo Sagrada em caos, mas que ironicamente acaba trazendo certo tipo de paz ao Loki que conhecemos. Esta Deusa da Trapaça, ao contrário da versão “original”, passou a vida fugindo da AVT e tem como única meta destruir a organização que dita como o tempo deve fluir, garantindo o livre-arbítrio a todos. Diferente dos vários propósitos que Loki já teve, Sylvie tem um objetivo que pode ser visto como nobre, e agora, livre daquilo que pensava querer, “nosso” Loki pode tentar ser algo diferente. “Nós podemos perder, até dolorosamente, mas não morremos”, diz ele em certo momento. “Nós somos mais forte do que imaginamos”, afirma em outro.

O Loki que conhecemos, ou pensamos ter conhecido, era envolto em narcisismo e sede de poder. Seu complexo de superioridade o colocava acima de qualquer outra possível versão de si que poderia conhecer. Um vilão, como se autoclassifica. Mas tudo isso fazia parte da ilusão. “Um truque cruel e elaborado conjurado pelos fracos para inspirar medo”. Agora, oficialmente “morto”, Loki tem na verdade a chance de viver pela primeira vez de forma genuína. E ao poder se ver refletido em não só uma, mas várias variantes, Loki reconhece que há muito mais em si do que só mentiras e ilusões.

Era este tipo de discussão que a série parecia querer explorar, e até consegue em sua maioria. No entanto, a partir do episódio 4, é possível sentir que o foco sai da pergunta “o que é um Loki?” e vai para “quem está por trás da AVT e por que isso é importante?”. Este segundo questionamento até faz sentido com a trajetória de Sylvie, mas sua resolução acaba tendo pouca relação com a personagem. Quando ela e Loki decidem caminhar juntos com o mesmo propósito, depois de terem estabelecido uma conexão tão forte um com o outro, a trama parece sempre puxá-los para trás, como para garantir que uma revelação final de quem está por trás da cortina acontecesse apenas no último episódio. Em sua metade final, a série então se torna uma sucessão de cliffhangers, tentando forçar uma curiosidade no público sobre a surpresa no fim do caminho. Mesmo no episódio 5, quando a produção tem a chance de explorar ainda mais a identidade dos Lokis, a narrativa só parece querer fazer gracinhas e jogar easter eggs na tela, novamente atrasando a progressão da história, que em seu penúltimo capítulo já não conta com muito tempo para responder os questionamentos existenciais que jogou lá no início.

O episódio final é então utilizado em sua maior parte como prelúdio para a nova fase do Universo Cinematográfico da Marvel, usando de diálogos expositivos nem tão inspirados como os dos capítulos iniciais, e prejudicando o desenvolvimento de personagem que a série parecia estar disposta a ter. Loki e Sylvie ainda desfrutam de um momento para discutir sobre quem são, mas a escolha final a ser feita é menos sobre o destino de um Loki, e mais sobre o que a Marvel precisa que aconteça para suas produções futuras. Este problema foi o que mais minou o potencial de “Falcão e o Soldado Invernal”, e só não atrapalhou tanto “WandaVision” porque lá a história principal conseguiu ser o foco do início ao fim.

Depois de três séries lançadas, é visível como a Marvel ainda está encontrando o jeito certo de transpor seu formato usado em filmes para uma produção com vários capítulos, que ainda por cima são lançados com intervalos de uma semana entre si. Todo esse tempo faz com que o público crie expectativas baseadas naquilo que assistem a cada novo episódio. Assim, apresentar uma ideia no início para depois abandoná-la, dificulta a confiança e, consequentemente, promove o desinteresse. Isso é algo que o MCU não pode permitir, ao estar entrando em uma nova fase dividida em filmes e séries, exigindo um comprometimento ainda maior dos fãs – e tendo de manter o apelo a novas audiências.

“Loki” ainda é uma ótima jornada, em grande parcela graças ao fenômeno que é Tom Hiddleston. O ator não só deu vida ao personagem, mas fez dele um ícone que vai além dos limites das telonas (e telinhas). E sua história ainda não acabou. A série já está renovada para uma segunda temporada, e o Deus da Trapaça deve desempenhar um importante papel no futuro desta complicada nova saga do MCU. O que é ser um Loki? É ser o que ele quiser ser… até mesmo alguém bom.

Louise Alves
@louisemtm

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