Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 13 de julho de 2021

Viúva Negra (2021): despedida decente para alguém que merecia mais

Ainda que apresente irregularidades visíveis, o novo filme da Marvel entrega uma obra digna, permitindo que a tão amada protagonista acerte contas com seu passado, além de introduzir uma excelente personagem para o futuro do MCU.

Depois de diversos adiamentos devido à pandemia e uma demora ainda maior devido ao descaso da Marvel Studios com a personagem, “Viúva Negra” enfim estreou. Dentre tantas discussões que o filme gerou, nota-se que diversas razões se sobressaem para justificar a qualidade da obra, seja pela superficialidade da trama, pela possível falta de representatividade, pela computação gráfica insatisfatória… Tudo contribui para reconhecer que o maior problema do longa foram as expectativas de quem esperava receber um thriller pé no chão com muita ação e espionagem densa focado nas origens da personagem, mas acabou recebendo apenas mais uma eficaz “produção Marvel”.

Apesar dos primeiros filmes solos de cada herói do estúdio costumeiramente trazerem a origem dos protagonistas, aqui os acontecimentos passados da vida de Natasha Romanoff são apenas pincelados na sequência inicial. Vemos a jovem personagem viver uma vida comum com pai, mãe e irmã, até que uma fuga urgente nos revela que aquela família se tratava de uma farsa para encobrir uma missão de espionagem russa nos EUA. Pode parecer pouco para construir uma relação que ainda deixaria reflexos muitos anos depois, mas imagine o que são três anos na vida de uma criança, que não tem noção do que é realidade e do que é fingimento.

Após essa janela e os créditos iniciais — que tratam de abordar a exploração de jovens meninas abandonadas na temida Sala Vermelha, onde serão treinadas para se tornarem Viúvas Negras — somos transportados para pouco depois dos acontecimentos de “Capitão América: Guerra Civil”, e vemos Natasha fugindo das autoridades após ajudar Steve Rogers a salvar seu amigo Bucky Barnes. A atuação sensacional de Scarlett Johansson torna as cenas seguintes pesadas e acaba mostrando cansaço e pesar em seu semblante. Embora tente se convencer de que já está acostumada a assumir novas identidades, desta vez a protagonista está deixando para trás algo que, como vimos no início, ela jamais teve: uma família.

O ritmo volta a acelerar quando Natasha sofre o primeiro ataque do Treinador, vilão que surge como uma força imparável e misteriosa em busca de um conteúdo que a Viúva Negra até então desconhecia a procedência. É curioso notar neste início de primeiro ato o quanto a diretora Cate Shortland (“A Síndrome de Berlin”) possui uma mão presente na idealização da ação do filme, pois este estilo se repete também nas cenas de drama. Tratam-se de filmagens tremidas e muitos enquadramentos fechados, intercalados por alguns vistos de ângulos bem imaginativos, como uma forma de aproximar bem o público dos acontecimentos do longa.

De posse do conteúdo, Natasha identifica a remetente — Yelena, sua irmã da família falsa — e vai ao seu encontro em Budapeste. Nesse quase lendário cenário para quem acompanha o Universo Cinematográfico da Marvel, temos mais uma excelente luta, primeiro entre as irmãs, e um pouco depois em um novo encontro com o Treinador, desta vez auxiliado por várias Viúvas. É aí que, além de finalmente recebermos informações sobre a missão onde o Gavião Arqueiro e a nossa Viúva Negra se conheceram, também entendemos o plot deste filme: um acerto de contas com o passado. Uma missão antiga cujo resultado negativo só foi descoberto por ela agora, além de toda a empatia de evitar que mais mulheres sofram males ainda piores do que ela sofreu.

Convenientemente ou não, a melhor forma de acertar as contas com o passado é reunindo a família para ajudá-la. A primeira a embarcar é na verdade quem realizou o chamado para a missão, injetando um ânimo em Natasha e afastando aquele sentimento pesaroso mostrado anteriormente e que certamente ficou ainda mais forte nos acontecimentos finais da personagem em “Vingadores: Ultimato”. Esperava-se muito da participação de Yelena, afinal, ela possivelmente herdaria o manto da Viúva Negra no MCU. Mas Florence Pugh agarra a oportunidade com força e constrói uma personalidade forte, conspícua, geniosa e irônica, deixando claro que não se trata de uma cópia de Natasha, mas sim de sua irmã mais nova que sofreu talvez ainda mais, tanto na Sala Vermelha quanto pela ausência familiar. Se a expectativa de ver a nova personagem no futuro da Marvel é promissora, tão grande quanto é a frustração de (provavelmente) não poder mais ver as duas contracenando novamente.

Após aceitar a missão, elas partem para encontrar alguém que possa ajudar a encontrar a Sala Vermelha e, consequentemente, o grande vilão General Dreykov, interpretado por um Ray Winstone não muito inspirado. Essa é a desculpa para a adição de Alexei, ou o Guardião Vermelho, equivalente soviético do Capitão América (como símbolo e como super soldado) e figura paterna das meninas; e Melina, Viúva da mais alta hierarquia e figura materna das irmãs. Apesar de ajudarem a construir uma bela sequência, em que o ápice do clima intimista dado por Shortland é atingido em uma simples reunião na mesa de jantar, não muito mais pode ser dito de ambos. Apesar da qualidade e talento reconhecíveis, David Harbour acaba assumindo o papel de alívio cômico mais previsível do que necessariamente funcional, enquanto a oscarizada Rachel Weisz sequer encontra espaço em tela para desenvolver melhor sua personagem.

À medida que caminha para o ato final, os tradicionais problemas da “fórmula Marvel” acabam se incorporando ao plot. Apesar de adversidades e soluções igualmente superficiais e resolvidas com as famosas conveniências de roteiro, é nas explosões e efeitos especiais desmedidos que “Viúva Negra” acaba se perdendo. Se por um lado a trama rocambolesca com direito a feromônios controladores traz ao filme uma aura de longas de espionagem dos anos 1970 e 80, ao menos temos o prazer de ver a protagonista tomando as rédeas da situação e expiando parte da culpa que carregava até então.

O que acaba jogando contra a produção é a necessidade de tantos efeitos e cenas de ação irreais e com pouca ou nenhuma consequência — algo que percorre a obra inteira, mas se destaca negativamente no terceiro ato. O tão esperado thriller de espionagem pé no chão dá lugar à ação super-heroica que todos estão acostumados, típico de um estúdio que, diferente da personagem que retratou aqui possivelmente pela última vez, evita sempre correr grandes riscos. A decepção se dá porque, ainda que esteja sempre em pé de igualdade com os heróis, Natasha não possui os famigerados superpoderes, mas toda a história e ambientação tratam ela e as demais como se os tivessem. Felizmente, Cate Shortland faz o que pode para que estas cenas caóticas não virem um pandemônio, e acaba se saindo surpreendentemente bem até mesmo nesse aspecto.

Apesar de tudo, e diferente de muito que já foi mostrado, ainda observamos uma pequena evolução da Marvel neste segundo filme do estúdio com uma protagonista feminina. Uma diretora foi capaz de inserir sua linguagem na obra, trabalhando uma mulher badass com sentimentos sem sexualizá-la como tantos fizeram antes dela. E, de quebra, conseguiu inserir uma nova personagem no universo de uma forma tão intensa que dificilmente não será chamada para dar continuidade ao que pode ser utilizado. Para os ansiosos que tanto clamam sobre o atraso de “Viúva Negra” — na cronologia do MCU, não por causa da pandemia —, talvez esta tenha sido uma boa despedida para a tão amada Natasha Romanoff. Sabe-se lá o que nos esperava caso o longa tivesse sido lançado pela Marvel de dez anos atrás.

Martinho Neto
@omeninomartinho

Compartilhe