Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 24 de junho de 2021

Manhãs de Setembro (Prime Video, 2021): uma ode à aceitação

Marcando a estreia da excelente cantora Liniker em uma grande produção, a série inova a maneira de se abordar a representatividade ao entregar uma comovente trama sobre a constante reconfiguração de laços afetivos e as poderosas influências que estes exercem.

Não há como negar a importância da representação na Arte, capaz de amplificar vozes e conceder espaço a figuras muitas vezes marginalizadas. Dotados de um alcance estrondoso e munidos de responsabilidades, é ótimo testemunhar a articulação de grandes veículos em nome dessa necessária representatividade, iniciativa que tem permitido que os mais diversos países se vejam envolvidos em campanhas de distribuição mundial. Levemente inspirada pela icônica trajetória da cantora Vanusa, representante da Jovem Guarda musical que muito marcou o Brasil nos anos 60 e 70, um ótimo fruto desse movimento é a série “Manhãs de Setembro“, produção que chega para expandir o catálogo do Amazon Prime Video com sua promissora primeira temporada.

Decidida a deixar para trás a vida no interior, a cantora Cassandra (Liniker) tenta se reafirmar como uma mulher independente e prestes a dar seus merecidos primeiros passos na carreira artística. Trabalhando como motogirl pelas ruas de São Paulo, ela conquista um pequeno apartamento para chamar de seu e tem no namorado, o simpático Ivaldo (Thomas Aquino), um verdadeiro porto-seguro. Em meio a pequenos shows da vida noturna paulista, entretanto, a sua vida se transforma por completo quando Leide (Karine Teles), uma moça de seu passado, bate à sua porta. Acompanhada do filho, Gersinho (o impressionante estreante, Gustavo Coelho), um menino de doze anos que nunca conheceu o pai, ela diz ter na protagonista aquele que o menino sempre procurou. Com essa inesperada chegada, Cassandra adentra uma trama repleta de reflexões, perpassando importantes questionamentos como a aceitação e o papel das bases familiares que em muito engrandecerão a sua bela jornada rumo à emancipação pessoal.

Dirigidos pela dupla Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, o primeiro destaque demonstrado pelo conjunto de cinco episódios está no seu ritmo, que muito bem administra o revezamento entre diferentes núcleos narrativos. Unificados pela forte presença da figura central, é interessante perceber como todos se materializam como formas de demonstração acerca do peso das influências, sejam elas negativas ou positivas, que exercemos uns sobre os outros. É lindo testemunhar, por exemplo, a aprovação que Cassandra recebe do singelo casal formado por Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos), dupla que carrega, por meio da doce atuação dos dois atores, um olhar mais amadurecido acerca da autoaceitação, livre de julgamentos para com os outros e muito menos desgastantes sabotagens internas. Habituados às surpresas pessoais e externas que a vida pode trazer, eles tentam estimular a personagem a aceitar Gersinho, buscando fazê-la compreender a importância de se ressignificar como uma possível figura materna para o garoto. Não suficiente, eles próprios se colocam como suportes para o último, empenhados em fazê-lo compreender como a associação de certos aspectos à masculinidade, como a adoração pelo futebol, por exemplo, não passam de artifícios superficiais construídos por personalidades inseguras e corrompidas em seu interior.

Paralelo à segurança exibida pelas duas presenças, é igualmente bem posicionado o papel que Ivaldo exerce ao lado da protagonista, autorizado pela mesma a ser quem é mas incapaz de transcender seu orgulho próprio a outras conexões humanas. Tendo uma vez nos conquistado com seu contagiante carisma, é triste perceber como o personagem de Thomas Aquino – ator que bem harmoniza sua compaixão e suas inseguranças – se torna um refém de sua própria passividade, forçado a esconder a própria natureza perante a demais figuras afetivas. Incapaz de ser quem realmente é perto de seu núcleo familiar, seu contraste com Cassandra, em quem busca uma completude, nos permite articular necessários comentários acerca da harmonia entre a autoaceitação e a proveniente de pessoas próximas.

Nesse mesmo âmbito, por exemplo, emerge a complexa caracterização de Leide, que na pele da sempre excelente Karine Telles tenta se encontrar como uma boa mãe. Sujeita a incontáveis pressões e fardos infelizmente atrelados a sua condição social, ela batalha para sobreviver à árdua vida de vendedora ambulante enquanto cede a algumas tentações e opiniões do senso comum, permitindo assim, mesmo que inconscientemente, que a aspirante a cantora e seu filho se aproximem de algum modo. Jamais renegando as suas responsabilidades todavia, é comovente ver seu caráter se dividindo entre desvios morais e o bem estar do menino, disposta a fragilizar algumas de suas relações – e até mesmo deturpar a maneira como o menino a enxerga – para colocar o último em primeiro lugar.

Desse modo, estabelece um vínculo especial com a personagem da cantora Liniker, equivalentes no processo de busca por um lugar como mulheres em uma sociedade conturbada. À beira de sua tão almejada liberdade, Cassandra é atropelada pela chegada de uma mulher que, diferente dela, não foi tão adiante em sua libertação feminina, embora compartilhe da necessidade da artista em alcançá-la. Sendo assim, os efeitos positivos que a protagonista poderia exercer sobre Leide – potenciais resultados da percepção de carregam variadas semelhanças – acabam sendo enfraquecidos pelas barreiras que ambas insistem em erguer umas sobre as outras, incapazes de alcançar uma necessária harmonia. Por conta disso, as libertações que a musicista passa a inspirar em Gersinho, por exemplo, passam a ser mal recebidas pelas percepções de sua mãe, exemplificando mais uma vez os choques que devemos atravessar para balancear o equilíbrio consigo próprio e para o outro.

Seguindo essa lógica das inspirações que libertamos uns nos outros, é bonito pensar na maneira como o projeto transpõe, munido de um ótimo trabalho de fotografia e de uma excelente trilha sonora – sendo necessário reconhecer também o papel que a música homônima, da cantora Vanusa, exerce no primeiro episódio -, os cenários – compostos por gravações que se dividiram, por conta da pandemia, entre São Paulo e Montevidéu – em que se passa, preenchendo lugares vazios e envelhecidos com luzes típicas de uma rotina noturna e cheia de vida. Desse modo, os tons cinzentos e apáticos que permeiam Cassandra durante os dias são substituídos pela atmosfera sedutora dos bares noturnos, inundados por colorações neons que esbanjam energia e luminosidade. É a ressignificação de fragmentos urbanos comumente ignorados, sejam eles seres ou espaços, mas que escondem muita alma por detrás de suas paredes, apenas esperando para que alguém lhes dê a atenção que tanto merecem.

É uma pena, todavia, reconhecer que, exatamente por serem tão interessantes, determinadas personagens seriam dignas de um melhor aprofundamento, mas tal defeito pode ainda ser revertido em futuros episódios, conforme sugere o ótimo gancho deixado ao final da maratona.

Com tudo isso, “Manhãs de Setembro” é uma ótima demonstração de como representar nada mais é do que reconhecer que certas figuras sempre estiveram lá. Como deixa muito claro o roteiro escrito a três mãos por Marcelo Montenegro, Josefina Trotta e Alice Marcone – que também transpõe experiências pessoais, como cantora trans, para as situações retratadas em tela – o arco de sua protagonista, na pele da brilhante Liniker, que em seu primeiro papel em uma grande produção externaliza conflitos igualmente pessoais e universais, não está relacionado a sua descoberta pessoal. Esta já sabe exatamente quem é e quais evoluções deseja atravessar, tentando apenas ajustar os laços que estabelece com os demais e de que forma estes hão de se reestruturar.

Por conta disso, a série é uma inovadora atração no campo da representatividade, hábil em dar um importante passo rumo ao fim da descriminação de pessoas que fogem aos infelizes “padrões” sociais ao perceber que as mesmas não devem ser uma temática em especial, mas sim que merecem estar associadas a quaisquer assuntos que devam ser discutidos em obras audiovisuais.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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