Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 31 de maio de 2021

Verão de 85 (2020): paisagem sedutora para uma paixão juvenil

François Ozon insinua fazer um romance de amadurecimento juvenil, mas acaba fazendo um drama romântico sobre liberdade e morte.

“Verão de 85” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 30/07 – acesse aqui.

Os primeiros minutos de “Verão de 85” dão o tom do que será a narrativa, entre méritos e tropeços, do mais recente trabalho de François Ozon. A primeira sequência traz um jovem conduzido por um policial pelos ambientes sombrios de uma delegacia, enquanto a narração em voice over fala do fascínio do rapaz pela morte, mas não por cadáveres. Em seguida, passamos a outra cena na qual a mesma personagem veleja por um mar encantador durante um tempo agradabilíssimo. Trata-se, portanto, de um filme que transita entre passado e presente e lida com o contraste entre morte e liberdade, apesar de alguns desses núcleos se sobressaírem mais do que outros como construção artística e dramática.

Livremente inspirada no livroDance on My Grave” do autor britânico Aidan Chambers, a trama se passa na década de 1980 e se concentra em Alexis (Félix Lefebvre). Ele está completando 16 anos e desfruta seu aniversário no mar na costa da Normandia. Tudo estava bem até o início de uma tempestade virar o barco do garoto e fazê-lo ficar exposto às dificuldades daquela situação sozinho. É neste momento que aparece David (Benjamin Voisin), um jovem de 18 anos que o ajuda a voltar para a praia. A partir daí, Alexis passa a conviver com o amigo dos seus sonhos numa relação que ganha cada vez mais intimidade e pode durar mais do que somente um verão.

A sensação de liberdade que preenche a produção vem de David, o rapaz mais velho que perdeu o pai e trabalha numa loja de artigos marinhos com a mãe. Desde o primeiro encontro em alto mar, ele parece flertar e querer conquistar Alexis insistindo para que passem mais tempo juntos e fazendo insinuações sexuais para o novo amigo (leva-o para sua casa para tomar banho e se trocar ficando ao lado da banheira por um tempo, provoca-o durante uma sessão de cinema e cuida de seus ferimentos, após entrarem numa briga, num momento de forte tensão sexual). Benjamin Voisin cria uma personagem que não se resume a um arquétipo ou estereótipo único, demonstrando ser uma pessoa de sexualidade mais fluida e adoradora do desprendimento de andar de moto em alta velocidade (nada mais simbólico do que se sentir livre na estrada e, como o próprio David diz, entrando numa bolha temporal ao perseguir uma velocidade maior).

Já a caracterização de Alexis é mais contraditória e oscilante sob certos aspectos. O interesse que tem pelo significado da morte para diferentes povos, especialmente os rituais do Egito antigo, parece um adereço pouco integrado ao seu arco narrativo (mesmo as imagens coladas em seu quarto soam como ilustrações incompletas para a questão). As dúvidas típicas do início da fase adulta são mais expressivas para compor a trajetória do adolescente, principalmente quando as incertezas entre trabalhar ou estudar e as relações distintas com os pais são amenizadas pela concretude do sentimento que começa a construir em relação a David. Se o outro rapaz imaginava estar numa aventura amorosa sem compromissos ou cobranças, Alexis se entrega de corpo e alma ao romance sendo, inclusive, contagiado pela energia do companheiro – por exemplo, quando ele dançam numa boate e o protagonista recebe de David um fone de ouvido para escutar a canção Sailing.

Embora as personagens principais tenham suas subtramas próprias, a dinâmica entre elas é mais rica. Por conta disso, François Ozon resgata sua capacidade, já vista em “Graças em Deus” e “Amores Duplos“, de evocar a intimidade de suas histórias segundo as exigências de cada narrativa. Nesse projeto, o diretor consegue levar o espectador delicadamente para dentro do relacionamento de Alexis e David através de closes nos jovens e de planos detalhes para destacar a sensualidade dos dois corpos (isso feito sem abandonar a sutileza a sugestão da primeira noite de amor). Além disso, quando se abre o plano para composições mais gerais, o cineasta explora a beleza sedutora da praias da Normandia e o lirismo da natureza ao redor das estradas percorridas de moto, investindo sempre em cores muito vivas dignas de uma pintura – até mesmo em cenários fechados, como a boate, esse padrão visual é estabelecido de modo a simbolizar a influência de David sobre Alexis.

Porém, a obra não se atém apenas ao período em que os jovens se relacionaram e ao tema da liberdade de sensações. O roteiro se alterna entre o passado (quando a paixão ocorreu) e o presente (gerado por um acontecimento chave que separou o casal), além de também se interessar pelo arco associado à morte. Em termos estruturais e dramáticos, o contraste cronológico e temático é menos inspirado, já que os recursos utilizados não têm um efeito tão significativo e as cenas em que Alexis e David não contracenam são inferiores àquelas em que estão juntos. Assim, a narrativa não linear não é tão bem-sucedida em flertar com o mistério de ocultar o risco de prisão de Alexis, usar a narração em voice over para sugerir o talento literário do protagonista e a necessidade de contar seu lado da história, o ressurgir de uma pulsão de morte no garoto e a alteração da fotografia e do design de produção para uma paleta de cores melancólica.

O afastamento das personagens centrais no fim do segundo ato representa de maneira mais evidente as diferenças dentro daquele relacionamento. Quando estas ocupam o primeiro plano, a narrativa faz contrastar uma pessoa mais espontânea interessada numa vida livre (David) e outro indivíduo movido pelo apego sentido por quem ama (Alexis), que se expande como símbolo para possíveis relações amorosas em geral. Não é a depressão do protagonista em se sentir culpado pelo fim desse relacionamento que mais chama atenção, mas a presença de Kate (Philippine Velge) para desestabilizar as certezas do adolescente e alertá-lo para erros que não percebia. Em especial, a fala da jovem no sentido de mostrar que Alexis amava a ideia que ele mesmo havia construído para David e não a pessoa em si ressoa como uma ilusão presente em tanto romances – como não se lembrar de paixões em que uma das partes projeta expectativas para o outro/a outra? Como não imaginar que a estética luminosa seja a representação visual da postura do protagonista.

“Verão de 85” já havia demonstrado desde o princípio que trabalharia dentro de contrastes. Entretanto, apenas um dos lados dessa balança de diferenças se sustenta com um impacto mais forte junto às emoções do público. Nesse sentido, o desfecho ainda pode frustrar um pouco quando precisa resolver os “mistérios” e elementos deixados pela estrutura não linear ou quando a questão da morte retorna para a narrativa. Em compensação, a conclusão também oferece um desenvolvimento interessante para o romance central, que parece se conformar nos moldes do amadurecimento de um coming of age, mas se distancia desse estilo ao deixar o protagonista em uma última cena bastante ambígua que aborda a questão da liberdade não concretizada totalmente para ele. Afinal, apesar de sua narração até poder insinuar seu desejo de viver outras histórias, suas ações o conduzem a repetir uma jornada já vivida com David.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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