Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 07 de maio de 2021

O Legado de Júpiter (Netflix, 1ª temporada): muita história para pouco entretenimento

Adaptação das HQs de Mark Millar sofre com trama inchada e perde todo o seu potencial.

Adaptação para Netflix dos quadrinhos homônimos de Mark Millar, “O Legado de Júpiter” segue uma primeira geração de super-heróis que vem mantendo o mundo seguro por quase um século. Daí, temos dois possíveis caminhos: mostrar os filhos desses guerreiros grandiosos, com as consequências e disfuncionalidades de uma prole que precisava dividir a atenção dos pais com o mundo inteiro e agora está sendo cobrada a comportar-se como tais; ou, simplesmente, demonstrar como os primeiros heróis adquiriram seus poderes. Indecisos, os produtores optaram pelo mais simples: retratar absolutamente tudo.

Brincando com enquadramentos diferentes para individualizar as linhas temporais, a série acaba adiando grande parte do seu potencial para uma possível segunda temporada. Isto acontece porque enquanto metade de seu tempo de produção está pincelando sobre relações familiares desestruturadas, lealdade, poder e transformação da sociedade, a outra metade retrata incessantemente as perturbações e devaneios do personagem principal, na tentativa inútil de justificar um possível comportamento dele no futuro, quando na verdade parecem até duas pessoas completamente diferentes.

Sheldon Sampson (Josh Duhamel) testemunhou o suicídio do próprio pai, o que o faz ouvir vozes, zumbidos, ter visões apavorantes e toda sorte de loucuras que, contra qualquer lógica, o capacitam para guiar seu grupo em busca de… alguma coisa (que nem ele sabe o quê). E essa busca vai se arrastando ao longo dos episódios, até que uma excursão rumo ao nada (aplicam-se sentidos literal e figurado) é idealizada, e o grupo mais improvável se forma, com pessoas rancorosas, desconfiadas e até desconhecidas, mas todas com algo em comum: confiar em alguém que elas mesmas julgam estar louco. Nota-se o quanto essa parte do roteiro embarca de cabeça em uma jornada sem qualquer alicerce na premissa da obra, servindo apenas para tirar nossa atenção do que realmente importa – afinal, qual surpresa espera-se encontrar em um flashback de origem de heróis?

Quase 100 anos depois, Sheldon agora é O Utópico, representação de um Super-Homem envelhecido e disposto a passar o bastão para os novos heróis – filhos dele e dos demais integrantes do grupo denominado União da Justiça. Quando estamos deste lado do plot, é fácil notar as influências e referências políticas, filosóficas e sociais que tanto atraem o público. Um filho herói salva a vida do pai quebrando o código de conduta que este defendeu por tantos anos. O pai, que sequer estaria vivo, não fosse a atitude do filho, acaba por puni-lo. Quem está certo? Perceba que essa dualidade nas respostas é o que faz esse tipo de trama ser tão atrativa. Existirão os defensores de ambos, tanto dentro da série como quem está assistindo. É isso que faz uma obra densa e bem trabalhada, ela faz pensar. E, infelizmente, é o que menos temos aqui.

Vivemos em um momento da história do cinema/TV/streaming em que as produções baseadas em quadrinhos, sobretudo as que envolvem super-heróis, estão se tornando mais e mais repetitivas, e a demanda atual é ser diferente do que já existe. Por isso há um certo boom de produções mais maduras nesse escopo (vide “The Boys” e “Invincible”), por se tratar de um território pouco explorado, comparativamente com o que nos acostumamos a ver. Conhecer um pouco das HQs que deram origem a “O Legado de Júpiter” nos faz mostrar o quanto a série tinha – e ainda tem – potencial para apresentar algo único, e devido a escolhas de roteiro, acaba entregando algo tão aquém desse potencial.

Mostrar a origem dos poderes desses heróis é algo possível de se trabalhar bem em dois episódios, e não se arrastando por oito, com repetições desnecessárias e conflitos vazios. É visível o quanto “O Legado de Júpiter” é prejudicado por essa decisão – o coitado do filho de Sheldon, Brandon (Andrew Horton), em um momento parece ser o grande catalisador da trama, para em seguida passar três capítulos sem sequer aparecer. É esse tipo de falha marcante no roteiro que, independente de bons efeitos visuais e valor de produção, acaba transformando algo de grande potencial em um entretenimento inchado e enfadonho.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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