Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de março de 2021

Druk – Mais Uma Rodada (2020): um balé à beira do precipício

Um dos diretores europeus mais interessantes dos últimos anos faz até agora seu melhor filme, franco favorito ao Oscar de Melhor Estrangeiro, trazendo ao debate uma discussão muito necessária e universal sobre o abuso do consumo de álcool entre jovens e adultos.

“Druk – Mais Uma Rodada” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 17/07 – acesse aqui.

A premiada filmografia do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, um dos precursores do movimento Dogma 95 e autor de filmes como “Festa em Família” e “A Caça”, é marcada por histórias familiares situadas no contexto de sua Dinamarca natal e que mergulham, pouco a pouco, nas dimensões mais disfuncionais das relações humanas. Seus filmes têm algo daquilo que Shakespeare eternizou numa fala de “Hamlet” de que “há algo de podre no reino da Dinamarca”, por mais rica e desenvolvida que seja aquela sociedade. Em “Druk – Mais Uma Rodada” o diretor aborda um dos temas mais críticos e notórios de seu país: o abuso do álcool, porém de forma não moralista e em algum sentido até catártica, promovendo uma discussão possível de ser importada para muitos outros países.

A história acompanha quatro professores do nível médio – com foco no professor de História, Martin, o sempre impecável Mads Mikkelsen – enfadados com suas rotinas familiares e desmotivados com o trabalho, que decidem conduzir um experimento etílico a partir da teoria de um psiquiatra norueguês de que o ser humano nasceu com um déficit de 0,05% de álcool no sangue. Tal deficiência seria a causa para a falta de maior traquejo social e criatividade humanas, sendo aconselhável, portanto, que se beba todos os dias, a exemplo de grandes figuras históricas. Como bons catedráticos, eles decidem registrar a experiência numa espécie de diário de campo exibido em tela, assim como o monitoramento de seus índices alcóolicos no sangue que acompanhamos a todo o tempo.

Mesmo tendo sido Martin quem primeiro “testa” a teoria, ele é o mais reticente entre os amigos em levá-la adiante, enquanto um de seus colegas logo sugere que eles não apenas aumentem a dose, mas que combinem outros alteradores de percepção ao álcool, afim de intensificar seus efeitos. Ainda assim, deprimido com o esfacelamento de seu casamento e à beira de perder o emprego, Martin entra na onda do grupo (todos homens de meia idade, claramente vivendo a famosa crise da faixa etária) e embarca numa espiral irresponsável, tal como adolescentes que acabam de completar a idade legal para beber.

Em muitos momentos da história, escrita por Vinterberg em mais uma parceria com Tobias Lindhom (seu colaborador em “A Caça”), esses quatro cinquentões parecem de fato voltar à puberdade (e talvez seja isso que eles desejam), utilizando o álcool para esconder suas inibições e inseguranças. O mais interessante no roteiro é construir um paralelo entre o descontrole desses “tiozões” e o alcoolismo entre os jovens, mostrando a ponte por onde esses hábitos passam dos adultos às novas gerações. Mesmo sendo uma história dinamarquesa, não é difícil reconhecer esses processos também na sociedade brasileira, assim como, acredito, em muitos outros países onde o álcool é socialmente aceito, embora seus efeitos sociais e potencial para tragédias seja reconhecidamente muito maior do que outras drogas ainda criminalizadas, como a maconha.

Em entrevistas, Vinterberg conta que a motivação para a trama foi a vontade de pôr em discussão o tema em seu país e realizar um filme que “celebrasse a vida”. O gatilho, porém, foi a visita de uma amiga dramaturga a sua família e uma conversa que ela teve com a filha de Thomas, Ida, em que esta conta sobre uma brincadeira em sua escola onde os estudantes correm entorno de um lago e disputam quem bebe mais rápido um engradado de garrafas de cerveja (e quem vomitar é penalizado). A partir daí, Thomas desenvolveu a história, utilizando a própria escola da filha como locação e a incluindo no roteiro com uma participação na cena inicial. Ida, porém, faleceu quatro dias depois de iniciadas as filmagens, vítima de um acidente automobilístico. Ela tinha 19 anos. O fato causou um grande impacto emocional não apenas no diretor, como em toda equipe e elenco da produção, próximos da família Vinterberg. O diretor relata, porém, que o entusiasmo de Ida com a história e a demanda por realizar um filme já em plena produção foram os salvadores de sua saúde mental naquele momento: “Filmar foi o que me impediu de enlouquecer”, diz o diretor reiteradas vezes nas mesas redondas online que participou com Sofia Coppola e Guilhermo Del Toro, nos festivais de cinema virtuais em que o filme foi lançado.

A história por trás da história faz de “Druk” um filme ainda mais potente, embora ele não precise disso para se estabelecer como um dos melhores do ano e franco favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Quem não sabe da tragédia que envolveu a produção poderá se impactar igualmente com essa trama belamente coreografada, como um jazz balé, por Vinterberg e seu diretor de fotografia Sturla Brandth Grøvlen (de “Victoria”). Na primeira parceria entre eles, ora vemos o tom livre, leve e solto da câmera, tal como Vinterberg se notabilizou desde os filmes do Dogma; ora vemos cenas com surpreendentes precisão de movimentos. O segredo, Vinterberg conta, é que Sturla tinha experiência em filmes “de ninja”, como diz o diretor, sendo perfeito na condução de um câmera por vezes trôpega, que emula a embriaguez de seus personagens. Destaque à cena final, um deleite aos olhos e ouvidos e uma explosão catártica para uma história melancólica que transita sempre à beira de um precipício.

Embora Mikkelsen seja um dos melhores atores vivos e sabendo que a interpretação de um personagem bêbado seja um dos maiores desafios para um ator, essa não é sua melhor performance, ficando atrás do show que dera em “A Caça”, quando foi injustamente esnobado pela Academia de Hollywood. O ator revelou que os preparativos de “Druk” envolveram testes filmados em que os quatro atores principais estavam alcoolizados, para que posteriormente vissem as cenas para entender as nuances do comportamento ébrio. O elenco de apoio, que inclui os familiares desses quatro amigos, seus alunos (jovens e crianças) e colegas professores preenchem belamente o resto da história. Aqui mais uma vez Vinterberg trabalha ricamente a direção de atores mirins, extraindo boas performances dos pequenos. 

A iluminação é fantástica e irretocável, combinando contraluzes com cenas bem iluminadas, que subitamente se transformam em sombras e trevas à medida que os amigos deixam de consumir experimentalmente álcool e começam a por ele ser consumidos. O único incômodo vem do excessivo controle do match painting, o equilíbrio das cores da paleta hoje em dia tão inescrupulosamente controlado pelos fotógrafos que, mesmo que agradáveis aos olhos, tira a verossimilhança das cenas quando se torna muito evidente. Não entendo a atual obsessão pelo controle das cores em cena (efeitos da pós-produção digital onde tudo é possível?), geralmente guiada por três cores base que se equilibram numa proporção quase áurea, mas que tiram a possibilidade de um escopo maior de tons à história. 

Com “Druk – Mais uma Rodada”, Vinterberg conseguiu sua primeira e muito merecida indicação pessoal ao Oscar, nominado entre os concorrentes à Melhor Direção. Com uma carreira com 16 longas-metragens em 51 anos de vida, o realizador é, sem dúvidas, um dos mais originais e interessantes autores europeus hoje vivos. Se seus filmes não são necessariamente populares com o grande público, com aqueles que os assistem (e que pena que não sejam mais pessoas) certamente eles encontram muita ressonância. O filme tem distribuição nacional da Vitrine Filmes, com data de lançamento prevista para 16 de abril nas plataformas de streaming. Por fim, Vinterberg é daqueles realizadores que conseguem fazer obras autorais que reverberam dias depois de termos assistidos. Aqui, tratando do alcoolismo da Dinamarca, ele nos faz pensar sobre nossa própria relação com o álcool (ou com qualquer outra compulsão) e nos questionar porque os seres humanos são tão social e emocionalmente travados e necessitam desses desopilantes para poderem sorrir e dançar à vida. 

Vinícius Volcof
@volcof

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