Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de março de 2021

Becky (2020): constrangedor suspense para desligar o cérebro

Um thriller esquecível que não consegue elevar as regras do gênero a partir de um roteiro ruim e não marca a incursão de Kevin James em seu primeiro papel dramático.

O cinema consolidou um popular subgênero do suspense e terror ao longo das décadas: o da invasão domiciliar. Nele, os protagonistas se protegem em casa enquanto os vilões tentam dominar, como em “Hush“, “O Quarto do Pânico“, “Uma Noite de Crime“, “Aniversário Macabro“, “A Babá“, “O Homem nas Trevas” e “The Owners“. Estas são produções contemporâneas que brincam e até invertem as características desse tipo de filme, mas “Becky” não. O longa só ousa em escalar Kevin James num papel dramático e consegue evitar a completa mediocridade com uma montagem mais inspirada que o resto.

O nome “Becky” com uma adolescente no papel título (Lulu Wilson) remete aos tantos thrillers de mulheres habilidosas como “Anna“, “Hanna“, “Ava“, “Carrie“, “Lucy“…, porém ela é só uma menina vivendo a fase da revolta após perder a mãe pelo câncer. Seu pai (Joel McHale) a leva para a casa no lago da família com sua nova noiva de surpresa, para o azar dos prisioneiros fugitivos que resolvem invadir o espaço de Becky e mexer com seus cachorros justamente no auge de sua frustração.

Antes se a produção tentasse se divertir com a premissa e fizesse da jovem uma artista das armadilhas como Kevin McCallister de “Esqueceram de Mim“. No lugar, o espectador é preso a um roteiro com diálogos constrangedores, personagens rasos e motivações que desafiam a inteligência. Ela tenta se apoiar no drama dos acossados sem aproveitar justamente os elementos que costumam brilhar nesse subgênero, como o humor ácido, o gore eficaz ou as sequências inventivas. De certa forma, a sensação é de uma história que se desenrola em modo Deus ex machina todo o tempo, somente para justificar os confrontos e “reviravoltas” pouco inspirados.

O resultado fica ainda mais triste quando, dado o devido afastamento da trama, nota-se que houve um zelo em refinar a decupagem de algumas cenas para construir uma montagem estilosa, cheia de raccords falsos, superposições e planos espelhados. No entanto, essa vontade se esvai rapidamente e a encenação dos diretores Jonathan Milott e Cary Murnion se entrega à burocracia para executar um roteiro de “filme B” sem a energia que costuma elevar uma obra a essa categoria.

Essa montagem “salva” o filme de maneira a elencá-lo como “mais do mesmo”, sem a originalidade que outros almejam trazer, mas que ainda pode agradar quem já não tem grandes expectativas. A única expectativa que realmente pode frustrar é a esperança de algum humor, especialmente pela presença de Kevin James, um ator reconhecido pela sua carreira completamente voltada para a comédia até então. Dada a ruindade do texto, Kevin como um líder nazista até que se sai bem, mas muito longe de apresentar a mesma qualidade que Adam Sandler demonstra fora de sua zona de conforto, em “Joias Brutas” ou “Embriagado de Amor“, por exemplo.

O final da década de 2010 trouxe vários ótimos thrillers de invasão domiciliar e suas variantes, salpicando diferentes quantidades de sangue, comédia e tensão para conquistar públicos novos com fórmulas antigas. Cineastas como Adam Wingard, Jeremy Saulnier, Tyler Gillett e Matt Bettinelli-Olpin abriram portas em Hollywood por executar bons filmes inovadores e independentes com esses ingredientes. Infelizmente, “Becky” é um exemplo esquecível desse exercício de cinema. Que os envolvidos tenham novas chances para surpreender o público nos próximos projetos.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe