Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 27 de fevereiro de 2021

Judas e o Messias Negro (2021): malditas fraturas internas

Conduzido por uma ótima dupla de protagonistas, o filme prioriza a construção psicológica de suas personagens e acerta ao entregar uma visão diferente sobre a histórica luta racial.

Em um mundo tomado por diferentes abalos sociais, não são poucos os filmes que tentam se elevar através de temáticas relevantes. Saturadas a partir das típicas padronizações do cinema, muitas dessas obras acabam por diminuir narrativas carregadas de potencial, histórias que nas mãos dos diretores corretos alcançariam feitos memoráveis. É o caso do vencedor do Oscar, “Green Book”, conto racial que investe na construção de um protagonista branco ao invés de dar voz às verdadeiras vítimas do racismo, naufragando o que poderia ser uma bela história. Mostrando que a representatividade é um processo necessário não apenas em frente às câmeras, felizmente “Judas e o Messias Negro” não se enquadra nesses padrões, trazendo o talentoso diretor Shaka King como o condutor de uma interessante visão acerca de um importante líder da causa negra nos Estados Unidos.

Motivado pela intensa brutalidade policial que se instaurou em solo norte-americano na década de 60, o partido dos “Panteras Negras” foi um dos mais expressivos expoentes da luta afro-americana, marcado principalmente por seu ideal norteador de autodefesa armada. Criado pelos universitários Huey P. Newton e Bobby Seale – figura de destaque na produção “Os 7 de Chicago” -, o movimento ganhou especial apelo em sua divisão em Illinois, onde se viu liderado pelo carismático ativista Fred Hampton (Daniel Kaluuya). Defensor de uma forte aliança entre diversos grupos defensores dos direitos civis, o último deixou um forte legado, preservado nos inúmeros cidadãos que se viram inspirados por suas ações revolucionárias. Essa narrativa, entretanto, não é apenas dele, mas também do infiltrado do FBI que conseguiu se passar por um de seus braços direitos, Bill O’Neal.

Dividindo o protagonismo com Hampton, a personagem do talentoso LaKeith Stainfield desperta assim interessantes questionamentos sobre os conflitos internos do homem, dividida entre a sua salvação pessoal e o choque com seus semelhantes. Preso por um assalto, O’Neal se vê pressionado pelo agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) a integrar os Panteras para evitar cumprir uma longa pena, adentrando assim uma espiral crescente de privilégios – que facilitam a sua investigação e tornam seus desvios ainda mais sedutores – e se afastando de ideais que sabe que deveria defender. Tem-se aí o primeiro diferencial da visão de Shaka: o desenvolvimento de uma trama sobre preconceitos que vai além da divisão maniqueísta entre caucasianos e negros e propõe a construção de uma complexa figura central.

Embora sejam numerosas e necessárias as sequências que exploram a enorme brutalidade de policiais brancos – as quais, a exemplo do angustiante cena próxima ao final, são eficientes na manutenção de uma tensão constante, amplificada pela eletrizante trilha de Mark Isham e Craig Harris -, é gratificante perceber como o filme vai além da exibição de caricaturas ao propor uma demonstração mais humana e psicológica do desencontro humano com a sua própria natureza. Para isso, impressionam sacadas visuais como a exibida no início – em que o público testemunha, por meio de um belo plano-sequência, o furto de um carro durante o qual os enquadramentos ocultam o rosto de O’Neal, demonstrando visualmente como desejos materiais são capazes de distorcer a nossa “verdadeira face” – e as variadas linhas narrativas que exploram os diferentes aspectos que podem afastar indivíduos de sua essência e produzir imagens imprecisas de seus perfis.

Seja a indecisão que molda a belíssima atuação de Stanfield – ator que equilibra magistralmente a dor de reconhecer o incorreto mas ainda assim ser incapaz de não o fazê-lo – ou a coragem que determina a também notável performance de Kaluuya – capaz de harmonizar muito bem a fúria que existe em seu personagem com o carisma que o coloca como um grande líder – , o interessante é perceber como as trajetórias de suas personagens, por mais distintas que possam parecer, se complementam, enunciando assim a grande mensagem que a produção deseja transmitir. Se por um lado as decisões de O’Neal o aproximam de conquistas supérfluas, o poder de Hampton passa a influenciar a mentalidade de seu “aliado”, reforçando a dualidade de Bill que acaba por envolver o espectador. Mais do que isso, reside aí um discurso de que o que verdadeiramente nos define são as conexões que estabelecemos, capazes de nos consolidar mais fortemente do que os simulacros que certas tentações acabam nos forçando ter.

Não suficiente, isso fica ainda mais evidente no discurso armamentista que Fred trazia consigo, ideais importantes mas que, se excedendo em alguns momentos, ameaçam corromper suas virtudes próprias e de seus seguidores, segundo determina o comovente arco de Jake Winters (Algee Smith). Pendendo a uma possível desumanização pela violência que prega, tem assim seu lado mais doce revelado pelo afeto que desenvolve por Deborah Johnson (Dominique Fishback), figura que reforça ainda mais a filosofia do longa acerca dos efeitos que exercemos uns sobre os outros. Tendo inspirado um verdadeiro sentimento revolucionário, estabelece-se assim que as vidas daqueles que já partiram passam a existir na memória daqueles que nos conheceram, máxima muito bem representada nos grandes discursos – segmentos em que a figura de Kaluuya desaparece nos quadros, substituída pela bela imagem de seus seguidores – e que se torna ainda mais impactante pelo teor trágico do projeto.

Desse modo, a maleável conduta de O’Neal acaba se associando profundamente com a jornada de Hampton para resultar no essencial ensinamento acerca da universalidade de nossos questionamentos e a necessidade de a percebermos como uma forma de interromper a perseguição ao próximo. Estando todos sujeitos a ímpetos de egoísmo, e que na maioria das vezes investem em construções artificiais de nós mesmos, é fundamental a interrupção de batalhas desprovidas de sentido e, persistindo em eleger certos setores sociais como “inimigos”, apenas realçam a incapacidade do homem de aceitar as falhas que carrega dentro de si mesmo.

Ao explorar esse debate com bastante propriedade, “Judas e o Messias Negro” é um longa digno de reconhecimento, se distanciando do saturado grupo de obras “pseudo-relevantes”. Embora possua suas convenções, a obra utiliza de sua bem explorada dupla de protagonistas para entregar importantes reflexões acerca da intolerância externa e interna e envolve o espectador até o seu final catártico.  É, dessa forma, um diferenciado filme sobre a importância dos laços que deixamos para trás como forma de coroar o nosso legado.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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