Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Pelé (Netflix, 2021): a influência e a ausência do Rei do Futebol

Documentário vai além das quatro linhas e demonstra como o futebol pode refletir diretamente na nossa sociedade. Em meio a lances geniais e seu evidente absenteísmo político, o Rei Pelé só queria dar alegria pro seu povo.

“O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”. A frase do italiano Arrigo Sacchi é sempre um recurso quando alguém pergunta o motivo do futebol ser tão grandioso. Uma composição de Moraes Moreira também ajuda a dimensionar – em “Saudades do Galinho”, o talentoso membro dos Novos Baianos traduzia o sentimento da torcida rubro-negra ao ver Zico deixando o seu clube do coração: “Agora como é que eu me vingo de toda derrota da vida, se a cada gol do Flamengo eu me sentia um vencedor?”. Sabemos da importância do futebol para o torcedor, mas com o documentário “Pelé”, da Netflix, o jogo vira: Edson Arantes do Nascimento colocou o futebol em um nível inimaginável, encantou o mundo, desfilou em campo e colocou muita bola na rede.

A obra aborda desde a infância do protagonista até a final da Copa de 1970, no México, e conta com imagens raras de bastidores, que ajudam a demonstrar como o esporte refletiu diretamente na nossa sociedade, principalmente no período em que o Brasil vivia em plena ditadura militar. Além da busca pela vitória em campo, era uma luta para trazer um motivo para o povo brasileiro sorrir novamente.

O longa-metragem conta com direção de Ben Nicholas e David Tryhorn, dupla já experiente na produção de documentários esportivos. Eles são responsáveis por “Tudo ou Nada: Seleção Brasileira”, série da Amazon sobre a conquista da Copa América de 2019, e “Crossing the Line”, sobre o ex-atleta Danny Harris, que recebeu a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 1984.

Com um grande acervo histórico de vídeos e fotografias, os diretores encorparam a produção com entrevistas bem diversificadas, incluindo a família do jogador, jornalistas, companheiros do Santos, como Pepe e Dorval, e da Seleção, como Zagallo e Jairzinho. Dividindo a narrativa entre capítulos com base nas Copas do Mundo, o formato se encaixa muito bem para contextualizar o cenário em que Pelé e o Brasil se encontravam.

O primeiro ato passeia rapidamente pela infância pobre e demonstra como o futebol surgiu na vida do menino espevitado, passando assim para o teste no Santos e suas primeiras aparições na Seleção Brasileira. Antes de aprofundar a narrativa na Copa de 1958, é feito um importante contexto referente à Copa de 1950, em que o Uruguai venceu o Brasil no Maracanã. No período, o evento foi considerado um grande fracasso nacional, tanto que o cronista Nelson Rodrigues cunhou um termo para o brasileiro que resiste até hoje, o complexo de vira-latas.

Com apenas 17 anos, Pelé já tinha um controle de bola e um poder de finalização invejáveis. Não foi à toa que marcou seis gols na campanha de 1958, inclusive dois na final contra a Suécia. Com a vitória, o brasileiro passou a se sentir mais confiante, e o Rei começou a contabilizar as vantagens e desvantagens da fama, pois já não conseguia andar na rua cercada por multidões de adoradores.

A dupla de diretores reforça ao longo de todo o documentário o processo da transformação de um jogador de futebol para uma instituição nacional. A publicidade começou a usar cada vez mais a sua imagem nas propagandas, e o Santos fazia excursões pela Europa, levando o nome do Brasil para o mundo. Quanto ao lado esportivo, o documentário é um show a parte. São centenas de narrações em português, inglês, depoimentos com muitas histórias de bastidores de pessoas que estavam ao lado do protagonista quando tudo aconteceu. É emocionante rever lances que perduram na memória de todo amante de futebol.

O tom do documentário muda quando chega em 1964, com o golpe militar e o exército tomando as ruas do Rio de Janeiro. Neste momento, o Rei do Futebol é criticado por se ausentar politicamente e por se encontrar diversas vezes com Emílio Garrastazu Médici, cujo governo é considerado um dos mais cruéis da ditadura. Neste ponto, a narrativa se confunde ao demonstrar os argumentos do protagonista, que se defende por se ausentar naquele momento, e a crítica dos próprios companheiros de clube, pelo seu comportamento solícito a incentivadores da censura e da tortura. Ao mesmo tempo em que os diretores não querem defender o seu protagonista, a montagem contraria o que o jogador diz, deixando a dúvida no ar se é uma ironia proposital ou apenas uma edição confusa. Até porque Pelé nunca se sentiu prejudicado, independente do Brasil estar numa ditadura ou em uma democracia. Vencer era sua prioridade.

“Pelé” é uma excelente demonstração de como é importante contextualizar o cenário político e o comportamento da sociedade em uma obra biográfica. Em um período, a história do Rei do Futebol e do Brasil são muito semelhantes. Em outro, ele preferia se voltar apenas para o mundo do futebol, de forma cômoda e com um olhar disperso. Com erros e acertos, é um gênio que sabia fazer o seu trabalho como ninguém. E se o resultado em campo refletia na sociedade, enquanto brincava de bola, o Rei fez o brasileiro aprender o significado de esperança.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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