Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 01 de março de 2021

Bliss: Em Busca da Felicidade (Prime Video, 2021) – uma visão autoral que não desabrocha

Ficção científica disponível no Amazon Prime Video impacta pouco, não consegue propor grandes experiências nem potencializa o estilo do diretor Mike Cahill.

Mike Cahill é um diretor e roteirista interessado em ficções científicas realistas. Por mais que seus trabalhos retratem o paralelismo entre duas realidades supostamente diferentes, a abordagem do realizador tenta tornar palpável cada elementos fantástico inserido. Se em “A Outra Terra” ele articula os conflitos dramáticos da protagonista com a imaginação de um novo planeta Terra, em “Bliss: Em Busca da Felicidade” os resultados ficam abaixo de sua criatividade. O filme disponível no Amazon Prime Video não envolve em seu realismo nem desenvolve sua dimensão fantasiosa.

A ideia de dois mundos que se chocam e/ou se entrelaçam perpassa a trajetória de Greg (Owen Wilson), um homem divorciado que trabalha em uma empresa de assistência técnica. Quando conhece Isabel (Salma Hayek), toda sua vida muda. Ela afirma que ambos são as únicas pessoas reais em algo que não passaria de uma simulação tecnológica. À medida que passa a acreditar nessa versão, consequências inesperadas afetam o sujeito.

Inicialmente, a narrativa apresenta com méritos a oposição entre dois universos, isto é, a fantasia do desejo inconsciente e o cotidiano desestimulante. Ao invés de trabalhar, o protagonista projeta o sonho de morar em uma casa de frente para o mar com uma mulher específica através dos desenhos que faz. As ilustrações são uma fuga para uma existência em que não se dá bem com a ex-esposa, está distante dos filhos, é viciado em remédios para dor e trabalha numa rotina estressante. A sequência de abertura traduz os contrastes dessas experiências: enquanto o ato de desenhar e imaginar outra vida é silencioso e relaxante, o trabalho é caótico com os ruídos de ligações do chefe e dos colegas atendendo clientes – um leve movimento de câmera exemplifica o caos sonoro de todas as estações em atividade.

Com a chegada de Isabel, a produção se transforma. A personagem traz à tona um novo estilo para a trama, que ressalta a ficção científica ao definir regras para o universo (os contrastes entre pessoas reais ou não, os poderes liberados ao usar certas drogas, a manipulação de eventos daquela realidade…) e propõe um romance para Greg e Isabel (a mulher é o ponto chave para o homem passar por outras experiências, apesar de fantásticas e singulares). Porém, os dois gêneros não se sustentam com o passar do tempo, já que a mitologia do universo parece mudar a todo instante ou receber novas informações até o último ato e o relacionamento amoroso parte de uma premissa forçada que não convence. Assim, os desdobramentos da jornada do protagonista ocorrem através de fatos que o manipulam para diferentes rumos.

Outros estilos também aparecem na narrativa graças à presença de Isabel, especialmente o gênero ação. A partir dele, Greg mergulha em uma série de acontecimentos misteriosos enquanto sua filha Emily (Nesta Cooper) tenta ajudar o pai a restabelecer o equilíbrio de sua vida (afinal, ele fica ainda mais desequilibrado ao seguir Isabel por caminhos que não consegue entender). Essa reviravolta na história potencializa as diferenças entre a “simulação” e a “realidade”, ao levar o personagem a um mundo moderno e distópico que parece ter se tornado o paraíso na Terra, devido ao uso de tecnologias de ponta. De modo contraditório, Mike Cahill não lida com o universo “real” como este se coloca e o resultado é ser mais falso do que deveria ser a dimensão “simulada” – a iluminação de cores vivas saturadas e o design esterilizado dos cenários soam mais manipulados do que a fotografia cinzenta e as locações degradadas, o que enfraquece o conflito em torno da dúvida acerca do que seria verdadeiro.

Se a convergência de gêneros distintos e a criação de uma abordagem realista falham de forma geral, o diretor prepara com antecedência fatos que o roteiro irá expor mais à frente. Nesse sentido, há cenas esporádicas que propõem efeitos expressivos, como os movimentos de câmera que enquadram a fachada de uma clínica de reabilitação, o desnorteamento da perspectiva da sequência filmada em um rinque de patinação e longas cenas sem cortes durante os momentos de confusão mental do protagonista. Tais exemplos demonstram como a dramaturgia poderia ser melhor se incorporasse um uso mais criativo da linguagem cinematográfica, algo que ajudaria Salma Hayek a não viver uma personagem restrita a dar explicações sobre o que supostamente estava acontecendo. Por não valorizá-la, a obra apenas impacta em passagens isoladas com algum acerto visual do cineasta.

Comparando a abertura com o desenvolvimento narrativo, “Bliss: Em Busca da Felicidade” desperdiça a oportunidade de discutir a sensação de habitar distintos mundos e buscar possibilidades de escapismo. Assim, Mike Cahill extrapola a escala da ficção científica para algo grandioso com referências a “Matrix”, “Black Mirror”, “O Vingador do Futuro” e outros do gênero, dispensando suas qualidades em trabalhar com histórias autocontidas; do mesmo modo, o realismo não se concretiza por conta dos dramas de Greg não envolverem o público, de Owen Wilson não ter como se apropriar do personagem e do melodrama criado orbitar discursos simplistas (chegando ao desfecho, vêm afirmações como “a felicidade só é sentida quando se conhece a tristeza” e “realidades ruins podem ter pontos positivos”). De tanto falar em falso e real, o filme acaba entrando nesse limbo.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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