Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Relatos do Mundo (Netflix, 2021): a nobre arte de contar histórias

No primeiro faroeste da sua carreira, Tom Hanks interpreta um veterano de guerra que aceita o desafio de levar uma garota órfã para o seu novo lar.

Cerca de 25 anos após “Forrest Gump”, Tom Hanks volta ao papel de um contador de histórias. O contexto, entretanto, é bem diferente, trata-se do primeiro faroeste da sua carreira. Em “Relatos do Mundo”, novo longa-metragem lançado no Brasil pela Netflix, baseado no romance homônimo de Paulette Jiles, o ator interpreta o Capitão Jefferson Kyle Kidd, um veterano de guerra que trabalha viajando por diversas cidades pequenas dos Estados Unidos lendo notícias para os moradores. No caminho entre um vilarejo e outro, Kidd encontra Johanna (Helena Zengel), uma jovem que foi sequestrada pelo povo indígena Kiowa e que não fala inglês. Ele se oferece para levar a garota até a casa dos tios, os únicos parentes que sobreviveram ao ataque da tribo. Com este contexto, a dupla segue pelo deserto em busca do novo lar da pequena órfã.

A trama se passa no Texas em 1870, poucos anos após o fim da Guerra Civil americana. No período, ainda existia um clima de derrota e resistência contra o aceite das Emendas 13, 14 e 15 da constituição americana. De acordo com as ordens do Presidente Ulysses S. Grant, a região teria que abolir a escravatura, proporcionar aos ex-escravos o direto ao voto e realizar o pagamento das dívidas de guerra.

O diretor Paul Greengrass, que já havia trabalhado com Hanks em “Capitão Phillips”, controla muito bem o drama e a construção dos personagens, preparando espaço para a ação ocorrer de maneira orgânica. Os figurinos e cenários emulando o Texas no século XIX estão impecáveis e o diretor de fotografia, Dariusz Wolski (“Perdido em Marte”), se aproveita da iluminação por meio de lampiões para criar ambientes únicos durante a noite. De dia, usa muito os planos abertos para ambientar o espectador nas gigantescas planícies áridas, abusando das grandes paisagens do deserto, cânions e montanhas.

O roteiro, que foi feito pelo próprio diretor em conjunto com Luke Davies (“Lion: Uma Jornada para Casa”), se beneficia por essas viagens entre as cidades para diminuir o ritmo e aprofundar a história dos personagens, reproduzindo quase que um road movie. Em uma entrevista para a Reuters, agência de notícias britânica, Hanks comparou o filme com a série “The Mandalorian”, o que não é um completo absurdo pelo ponto de vista do formato da obra – assim como no longa-metragem, o personagem principal chega em uma região, encontra um desafio, vive uma aventura e parte para o próximo ponto, agora um pouco mais perto do seu objetivo.

Em seu primeiro longa-metragem, com apenas 12 anos, Helena Zengel faz uma estreia impecável. Isso tudo em um papel muito difícil, afinal a jovem precisa lidar com a dificuldade de comunicação, demonstrar muito apenas com o olhar e segurar as pontas na parte dramática ao lado do Tom Hanks. Definitivamente, não é pra qualquer um.

Por causa deste impasse linguístico, o ator precisa tentar interpretar o que a menina está tentando dizer, criando pequenos monólogos em muitas dessas cenas. Apesar da diferença de idade e de vivências, os dois passam por um momento muito parecido, pois ambos têm uma visão amarga do passado, fruto da perdas de entes queridos, e precisam seguir em frente em busca da criação de novas memórias.

A trilha sonora de James Newton Howard (“Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald”), ao mesmo tempo que busca referências de clássicos estabelecidos por Ennio Morricone, consegue impor sua própria assinatura com tons de suspense e apreensão nas ótimas cenas de ação.

“Relatos do Mundo” conta a história de um homem que busca fazer o bem mesmo sem querer nada em troca. Depois de tanto tempo enfrentando a guerra, por meio das suas notícias, ele propõe que os espectadores possam fugir dos problemas e ouvir sobre as grandes mudanças que estão acontecendo no país e no mundo. Em tempos de fake news, um personagem de 1870 dá uma aula sobre o poder da informação.

Fábio Rossini
@FabioRossinii

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