Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 07 de fevereiro de 2021

Voltei! (2021): o Brasil machuca

Fruto da pandemia, novo filme da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa sintetiza o sentimento brasileiro imaginando as consequências futuras da atual conjuntura do país.

*Filme exibido na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

“Todo dia eu acordo brasileiro” é um meme constantemente replicado nas redes sociais, fruto de um sentimento que boa parte do país sente diariamente em conjunto, ou seja, não é tão simples de descrever. Embora esteja travestido de uma distopia, “Voltei!” é o resumo de uma angústia real desenhada em um Brasil de 2030 que não é tão impossível de acontecer.

Alayr (Arlete Dias) e Sabrina (Mary Dias) conversam sobre suas vidas enquanto ouvem em um radinho de pilha o julgamento do presidente da chamada “República do Disparate” que o Brasil se tornou. Após lembrarem da irmã, Fátima (Wal Dias), que foi capturada e morta por cantar uma marcha de carnaval em oposição ao governo, ela retorna.

Repetindo a fórmula do último filme da dupla de diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio  (“Até o Fim”), inclusive com duas das atrizes retornando, o longa se sustenta em diálogos emulando um papo de bar. Os planos longos – e por vezes estáticos – impactam pelas escolhas de enquadramento intimistas acompanhando a naturalidade da cena que não se importa em deixar as sujeiras dos textos dado pelas atrizes.

Os diálogos e monólogos característicos do cinema de Ary e Glenda, que costumam explorar o íntimo dos personagens, desta vez servem para compreender o todo através daquele microcosmo. Se em “Até o Fim” a conversa das irmãs contextualizava a importância da relação de cada uma com elas mesmas, aqui em “Voltei!” as irmãs representam cada artista, cada professor, cada delegado, cada cidadão atingido pessoalmente pelo governo vigente, usando uma projeção de futuro como metáfora do presente.

Sendo produto da pandemia, o filme reproduz o confinamento ao se ambientar dentro de casa. Alinhando-se despropositadamente com os recentes acontecimentos no Estado do Amapá, o país se encontra numa crise energética que deixou os brasileiros sem luz por um longo tempo. A parte do clima profético que esta estética assume, a luz e a sombra são fortes imagens que sugerem os tempos de trevas em que o país se situa. Há uma brincadeira de apagar e acender velas que se fundem com a emoção das personagens – que, lembrando, falam pela voz de cada brasileiro – sendo a luz aquele fio de esperança que vem e vai a medida que somos inundados com boas e más notícias.

Embora as temáticas sejam pesadas, envolvendo tortura e impotência diante de um país falido, a obra abusa do humor e de música, também numa forma de retratar a brasilidade de um povo acostumado a usar da arte e a comicidade para conseguir seguir em frente diante das dificuldades. Apesar de tudo, o filme escolhe fechar com otimismo, retratando uma avidez pelo fim dos nossos tempos sombrios de agora.

“Voltei!” é a mais pura poesia catártica e profética da política brasileira. É o berro entalado que a gente disfarça com piada, que expressa todas as nossas dores, mas também nossos anseios, resultantes de um desgoverno que parece realmente caminhar para a distopia retratada no filme. Como bem simbolizado em um de seus diálogos mais cômicos, é o retrato de um povo que tenta escapar a todo custo das investidas de um governo sobre nossos orifícios. Glenda e Ary depuram: é com jeitinho que nós é que vamos colocar no deles.

Tayana Teister
@tayteister

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