Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 06 de fevereiro de 2021

A Mesma Parte de um Homem (2021): questionando as amarras do patriarcado

Longa de ficção, através do olhar assertivo da diretora Ana Johann, discute papéis de gênero com uma trama surpreendente.

*Filme exibido na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Ana Johann sabe o que quer dizer e não tem medo. Desde o seu roteiro – escrito em conjunto com Alana Rodrigues – até sua visão como diretora, ela entrega assertividade em “A Mesma Parte de um Homem” ao reger uma equipe coesa de atores e técnicos de som e fotografia. Trata-se de uma história que parte do interior do Paraná, com viradas surpreendentes e atmosfera provocante.

Renata (Clarissa Kiste) e sua filha Luana (Laís Cristina) vivem em um ambiente familiar baseado no medo, onde a completa submissão ao marido (Otavio Linhares) sugere dinâmicas sérias de abuso e dependência. Um dia a presença masculina da casa deixa de existir e um novo homem estranho e desmemoriado, Lui (Irandhir Santos), surge e ambas permitem que ele preencha um vazio causado pela insegurança, fazendo-o acreditar que fazia parte daquela família.

Existe uma tensão hostil no ar que faz o púbico querer entender o que está acontecendo desde os primeiros minutos. Embora haja elementos de sugestão, o roteiro não se preocupa em explicar tudo, deixando lacunas para o espectador preencher.

O desenho de som e a fotografia são impecáveis, mas o grande destaque está na atuação de Clarissa Kiste, pois é a partir dela que se nota a impressionante transformação da personagem. E este detalhe é o que sustenta a mensagem do filme, já que Renata é uma mulher presa por dogmas patriarcais. Assim, a trama se baseia no processo de sua libertação a partir da oportunidade de explorar o próprio desejo.

Isto fica claro com a diferença das três cenas de sexo que o longa apresenta, sendo a primeira o retrato da total subordinação, uma vez que a personagem está entregue ao único propósito de servir.  Nas outras cenas, passa de alguém que está pronta para receber o prazer pela primeira vez a alguém que assume o papel de absoluto controle, o que faz com que o sexo proporcione a Renata transitar pela descoberta do empoderamento à total liberdade. Ao se inverter o lugar de dominação, a protagonista entende qual o seu papel como mulher e qual lugar a figura masculina precisa ou não ocupar em sua vida.

Os homens são retratados naquele ambiente através do medo e da ameaça e o interessante é que a figura que vem quebrar esta regra é um personagem que perdeu a memória. Logo, ele é apresentado de uma forma desconexa em relação a seu papel na sociedade patriarcal, permitindo que todo o cenário ao seu redor possa ser maleável, além transformar as pessoas e a rotina de cada um. Assim, é possível que as mulheres possam experimentar outros papéis e viver das próprias decisões. Apesar de passarem a viver numa família cujo o alicerce é a mentira – algo que a trama irá se encarregar de resolver com uma escolha acertada e surpreendente no final – a casa ganha um clima saudável no qual todos podem se permitir relaxar os ombros ou mesmo sorrir.

Luana também tem um papel importante. Embora esteja sendo oprimida, assume o elemento que contesta e rejeita a realidade que se impõe a ela. Confronta as violências que ela e a mãe sofrem dentro do que é possível e oferece acalento quando é a única coisa que pode oferecer. Luana também rejeita a feminilidade imposta em sua aparência, habilidades e anseios, indo de encontro com o modelo feminino que existe em sua casa.

Fica muito clara a mensagem questionadora dos papéis de gênero na sociedade, pondo em cheque um sistema que convence mulheres que sua felicidade está em encontrar um marido. E indo além, mostra que para romper práticas abusivas o homem precisa se desvencilhar também dos comportamentos atribuídos ao masculino, reinventando uma masculinidade que não se baseia em agressividade e sim em respeito.

Tayana Teister
@tayteister

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