Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 30 de janeiro de 2021

O Tigre Branco (Netflix, 2021): devore ou seja devorado

Temperado com humor ácido e assassino, este quase conto de fadas ambientado na Índia confronta o capitalismo com base na desigual luta entre castas.

Graças às reformas econômicas realizadas no início da década de 90, a Índia apresenta hoje uma das economias de mais rápido crescimento no mundo. Além disso, o país asiático aparece como a sétima maior economia entre todas as nações. Contudo, ainda sofre com altos níveis de pobreza, analfabetismo, violência de gênero, doenças e desnutrição. Mas como é possível uma democracia, com tanta riqueza cultural, que investe na tecnologia e com altos índices econômicos, evidenciar tamanha desigualdade? Parte da complexa resposta vem narrada e ilustrada com bastante humor ácido e elevada carga dramática no visceral “O Tigre Branco“, filme lançado recentemente pela Netflix. Com um olhar crítico e apurado, o longa reconstrói a árdua jornada do protagonista para denunciar os malefícios do capitalismo selvagem adotado pelas castas mais privilegiadas da Índia e que funciona da mesma maneira em outros países ao redor do globo.

Adaptando o livro homônimo de sucesso escrito por Aravind Adiga, o longa narra a trajetória de Balram (Adarsh Gourav), um jovem indiano que nasceu em meio à miséria e que foi ensinado desde pequeno que seu destino era escolher um grande marajá para servir até o fim com muita lealdade. Trabalhando como motorista para o filho de um magnata da região, Balram começa, aos poucos, sentir na pele a desigualdade entre a sua casta e a dos afortunados, e com isso entende o ritmo que dita os rumos do capitalismo em seu país. Quando se dá conta de que é só mais uma galinha dentro de um enorme galinheiro pronta para ser abatida (uma metáfora cruel que o acompanha durante sua saga), o jovem muda seus conceitos e atitudes para chegar ao topo que lhe foi sempre renegado. A história de Balram é contada a partir do ponto de vista dele, com base num email que está escrevendo para enviar ao premiê chinês, de passagem pela Índia.

O documento, que discorre sobre todos os fatos da vida de Balram, é levado ao conhecimento do espectador por meio de uma envolvente narração em off. Responsável por conferir profundidade e mais realidade à jornada, a voz de Balram sempre aparece no momento certo para elucidar qualquer dúvida, oferecer uma crítica mais ácida e também jogar ainda mais luz sobre as motivações do protagonista. Mas não é só o tom intimista e sua eficiência em despertar a empatia do interlocutor que se mostra uma decisão acertada. Num filme onde o destino do personagem central é revelado em poucos minutos, o desenvolvimento precisa ser bem construído para justificar o final, seja ele controverso ou não. A intenção do realizador Ramin Bahrani com esse estilo de linguagem, além de aumentar a curiosidade, serve para destacar que não importa “o quê” aconteceu com o jovem indiano, mas sim como foi o caminho percorrido até o seu objetivo.

Nesse ponto, o roteiro de Bahrani (“99 Casas”) revela-se pragmático, apostando numa fórmula já bastante conhecida no cinema que, no entanto, funciona muito bem devido às ótimas atuações do elenco, com ênfase no protagonista. Adarsh Gourav, cuja recente carreira esteve focada em obras de origem asiática, tem aqui o seu primeiro grande teste num filme de alcance mundial. O ator abraça seu personagem como se aquela fosse sua própria história e sem demonstrar esforço encanta no papel. O primeiro desafio de Adarsh é a narração, a qual faz com fluência, sendo capaz de transmitir os sentimentos somente pela voz. O segundo desafio, ainda mais complicado, são as várias sequências onde ele precisa internalizar a raiva do personagem quando este está a beira de um colapso nervoso diante das ações daqueles aos quais serve. As situações, que o atingem como um soco, e também ferem o público, são amortecidas em uma interpretação digna de prêmios.

Além do texto crítico e de humor apimentado, a direção de Bahrani oferece o suporte necessário para que o filme seja uma experiência completa. Dividido por dois tons bem distintos – a primeira metade soa mais leve e a segunda mergulha forte no drama -, o diretor se mostra competente em unir essas metades, elaborar uma transição espontânea de uma para a outra e manter a narrativa coesa ao passo que a torna surpreendente. A fotografia de Paolo Carnera (“Suburra”) é outro elemento importante que ajuda a distinguir o presente com cores mais frias, do passado que apresenta uma paleta de cores mais quentes e empoeiradas. Sem deixar de mencionar a trilha sonora pop, cuja a função é complementar o deslumbramento do protagonista com a vida longe da miséria, “O Tigre Branco”, embora se perca um pouco nas quebras da quarta-parede, consagra sua mensagem anticapitalista com um quase conto de fadas cruel e verdadeiro.

Renato Caliman
@renato_caliman

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