Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Açucena (2021): dobrando a verdade em ficção

Do diretor Isaac Donato, que corroteiriza com Marília Cunha, “Açucena” surpreende na linguagem documental dividindo com o mundo a história real de uma senhora de 67 anos, que celebra todo ano seu aniversário de 7 anos.

*Filme disponível na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, evento com exibições online gratuitas entre 22 e 30 de janeiro de 2021.

Todo ano, no mesmo dia, é celebrada a festa de aniversário de 7 anos de Açucena. A festa envolve uma pequena comunidade em seus preparativos. “Açucena” apresenta este evento desconstruindo a linguagem de documentário.

As paredes têm que ser rosa. Cada boneca é preparada cuidadosamente, as mais antigas são reparadas. Os sapatinhos e as roupinhas, rosas e brancas, têm que estar perfeitos. As fitas, os balões, os anões de jardim, o portão pintado de branco, o bolo, os convidados, e claro, os presentes. Tudo deve estar em perfeita ordem para a anfitriã exigente.

Com uma equipe reduzida e baixo orçamento, o longa filmado em curtíssimo período de tempo explora bastante uma visão artística livre, com enquadramentos que recortam cada peça do ambiente e dos personagens e entregam uma a uma ao espectador. E assim, em cada cena o quebra-cabeça é montado até que no dia da festa a figura se torna completa.

Dessa forma, explora-se o tempo, o espaço, o esforço de cada um envolvido, resultando em dois filmes dentro de um só. Um deles é apresentado com suspense e mistério, que se monta enquanto avança. O outro é revisitado, reassistido ou por memória, quando já se sabe de todas as informações; portanto, o documentário propriamente dito com sua linguagem mais usual.

As entrevistas são substituídas pelos diálogos entre os envolvidos, como se o espectador estivesse presente testemunhando as cenas como um intruso. A câmera, ao invés de invasora, é parte da narrativa, o que transforma a abordagem documental. Deixa-se de lado o sujeito que invade o espaço para contar uma história que não é sua, pois ele faz parte do ambiente e deixa a própria história ser o sujeito.

Há um cuidado e respeito extremo ao se aproximar da entidade Açucena, que está ali como protagonista, mas sendo a força que promove todo o evento, o importante é o que ela provoca naquela comunidade. Não só a família da Mãe Guiomar, mas trabalhadores e seguidores se tornam peças importantes de uma engrenagem. Personagens externos também são endereçados cuidadosamente em um movimento importante que pontua a presença do preconceito contra religiões de matriz africana. Este detalhe ressalta a importância da representação de um documentário que aproxima pessoas externas ao tema, tal como os próprios indivíduos retratados no filme fazem por mensagens de áudio em aplicativos de comunicação e se colocam numa posição de afastamento.

Parte da ambiguidade documental-ficcional se dá pela presença de uma trilha sonora que evoca o suspense. Essa escolha mais prejudica que soma, ajudando a conferir uma imagem sinistra que já é atribuída por estereótipos. Enquanto todo o restante do filme caminha lado a lado da pureza de Açucena, mostrando a alegria de quem anseia por estar diante de sua presença, os poucos momentos que a trilha de suspense invade, esta fica deslocada.

O cuidado e o respeito estão impressos também na montagem que exalta os processos e a ambientação do ritual. É notória a inteligência aplicada na escolha das ferramentas narrativas que embora estejam ali por decisão, não interferem na verdade naquele espaço. Os elogios também podem chegar à sensibilidade de capturar essa história e dividi-la com o mundo através de um filme que dobra os limites do documentário.

Tayana Teister
@tayteister

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