Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 26 de janeiro de 2021

#RapaduraRecomenda – Domando o Destino (2017): a efemeridade dos sonhos

Baseando-se na história real do protagonista, Chloé Zhao leva o espectador a conhecer a cultura caubói. Com isso, debate a masculinidade e os sentimentos que cercam sonhos, sejam eles bons ou ruins.

Domando o Destino” é um perfeito exemplo do cinema de Chloé Zhao (“Nomadland“): faz ótimo uso de paisagens para transmitir emoções em sua narrativa e escala pessoas que não são atores profissionais com o objetivo de criar autêntica imersão no mundo que propõe explorar. Durante a produção de seu filme, a diretora conheceu um grupo de caubóis com origens indígenas da tribo Lakota. Ao passar um tempo na reserva com essas pessoas, ela conheceu Brady Jandreau, que competia em rodeios na época, além de treinar e domar cavalos selvagens.

No ano seguinte, ele sofreu um grave acidente em um rodeio e chegou a entrar em coma. Essa situação somente terminou após uma cirurgia que colocou uma placa de metal em sua cabeça, rachada por ter sido pisoteada por um cavalo. Brady ouviu dos médicos que não poderia mais cavalgar devido ao risco de morte ou sequelas mais sérias, porém ele logo voltou a trabalhar com os animais.

Ao perguntar a Brady o porquê de ele arriscar sua vida, a diretora ouviu a resposta de que eles tiveram que sacrificar um cavalo devido a uma ferida severa em sua perna, mas que ele recebeu tratamento e ficou vivo porque é humano, e isso não bastava. “Eu sou inútil se eu não puder fazer o que eu nasci para fazer”, disse o caubói. Este foi o estopim para que a cineasta convidasse Brady, sua família e seus amigos para interpretarem versões fictícias de si próprios. Assim, poderia contar a história do homem e explorar outros temas em subcamadas muito bem construídas pelo roteiro que a própria escreveu.

A imersão naquele universo é de uma eficiência ímpar. Tendo um texto que explora os receios e sonhos dos caubóis e filmando na reserva e nos lares dos moradores, é impossível não se conectar com tamanha humanidade mostrada em tela. É impressionante também o talento da diretora de tirar atuações excelentes de pessoas que nunca trabalharam com isso antes. Destaque para Tim Jandreau, (pai de Brady), truco e durão, o espelho da figura do caubói machão à moda antiga; Lilly, sua irmã, que tem Síndrome de Asperger e traz uma energia tão natural às cenas que conquista sempre que solta o que tem na cabeça sem filtro algum; e para o próprio Brady, que mergulhou no papel sem hesitação ao escancarar sua vulnerabilidade, entregando um personagem com o qual o espectador se sente íntimo, conhecendo-o por pequenos gestos e reações aos acontecimentos a seu redor.

Chloé Zhao capturou momentos em que Brady estava em seu emprego real, treinando e domando cavalos selvagens, que rendem cenas memoráveis. Elas são testemunhas da genuína criação de confiança entre homem e animal, sendo quase místico observar o relacionamento nascendo.

A fotografia de Joshua James Richards é magnífica ao explorar as belas paisagens da reserva – o céu aberto e o pôr do sol são de encher os olhos para compor metáforas visuais elegantes e profundas sobre os sentimentos de Brady. Assim, enriquece-se o roteiro que não possui arcos de personagens comuns, mas não carece de complexidade ao expor a alma de seu protagonista com tantos artifícios.

Assim, a cineasta cria uma obra que pode até parecer um documentário sobre a vida do homem, contudo sua fotografia cria uma poesia visual que discorre sobre vários outros temas: de subtextos mais simples, como as dificuldades financeiras da família de Brady após sua lesão, até camadas mais íntimas, como o impacto psicológico que o acidente tem em todos à volta do protagonista. O roteiro explora a masculinidade e o propósito nessa cultura onde a figura clássica do caubói ideal é almejada por praticamente todos os jovens. E mesmo focando em Brady, são palpáveis a insegurança e a esperança que os garotos têm para atingir esse objetivo.

Com imersão extremamente eficiente, “Domando o Destino” conta a história desse povo, ilustrando sua cultura e seu modo de tocar a vida. O sonho de ser o cavaleiro invencível (preste atenção na primeira e na última cena) rege as decisões dos jovens, mas o destino pode ser cruel e surpreender com o fato de que sonhos podem ser efêmeros. A pergunta que Chloé Zhao convida o espectador a fazer é se eles ainda valem a pena e como eles podem nos inspirar a superar obstáculos e seguir em frente.

Bruno Passos
@passosnerds

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