Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Minari (2020): raízes podem vingar em solo forasteiro?

Autobiográfico, longa de Lee Isaac Chung tem roteiro rico em camadas ao contar a história de sul-coreanos se mudando para o interior dos EUA, explorando relações familiares, xenofobia, raízes e o sonho americano de autossuficiência.

Nascido nos Estados Unidos e de ascendência sul-coreana, o diretor Lee Isaac Chung passou a infância na década de 1980 numa pequena fazenda no estado de Arkansas. Seu filme “Minari” é um convite para passear por suas memórias nesta obra praticamente autobiográfica, que ainda discorre sobre o sonho americano, xenofobia, raízes e família.

Se espelhando no garoto David (Alan Kim), Chung conta a história de uma família sul-coreana que já está estabelecida nos Estados Unidos há um tempo, mas se mudam da Califórnia para o Arkansas para tentar sucesso com sua própria fazenda. A família se completa com a irmã mais velha Anne (Noel Cho), a mãe Monica (Yeri Han) e o pai Jacob (Steven Yeun).

A mudança não cai bem com todos os membros da família. As crianças parecem perdidas ao não ter praticamente nada para fazer e a mãe tem dificuldades de aceitar que seu novo lar é um trailer isolado na área rural do Arkansas. Após um início desafiador, a avó dos garotos (Youn Yuh-jung) chega da Coreia do Sul para auxiliar a filha, e o filme começa de verdade.

A chegada da avó pega David de surpresa, já que o garoto tinha expectativas americanas do que uma avó deveria fazer (assar biscoitos e ser delicada e assistir novelas, por exemplo), mas se depara com uma mulher de alta energia, que não tem medo de usar linguagem chula e de dizer sua opinião. A partir daí, Chung – que também assina o roteiro – aproveita o ótimo elenco para criar interações que cativam não só de carinho, mas de palpabilidade. Através de olhares e falas bem colocadas, fica fácil imaginar toda a carga emocional que foi construída até ali pelos anos passados, incluindo aí os sentimentos bons e ruins.

O ótimo elenco traz vida ao filme: Yeun interpretando um homem obcecado por fazer a fazenda ser bem sucedida, ao ponto de enfraquecer seu casamento; Han dando vida a uma mulher carregada de preocupações e insatisfações; e com a ótima Yuh-jung injetando vida na tela e despertando emoções em outros personagens. Elogios também devem ser tecidos para os atores-mirins Kim e Cho são bons achados, com um transbordando impaciência e revolta, e a outra transmitindo resignação e adaptação.

A obsessão de Jacob, o genuíno carinho da avó desbocada, a insatisfação de Monica com a nova vida e a doença cardíaca de David são apenas alguns dos vários elementos que compõem a rica trama. Esta é bem ilustrada por Chung com ótimas ferramentas visuais que emprestam carga narrativa de peso, como a casa ser um trailer imóvel, ironicamente representando o isolamento da família que está num local longe de outras pessoas, mas também de uma cultura que não é bem recebida pela sociedade local.

Não que haja agressões ou olhares feios, mas as tentativas da família de fazer parte da sociedade evidencia barreiras culturais difíceis de serem superadas em um local que não está acostumado a lidar com estrangeiros. A xenofobia é retratada de maneira sutil, com as crianças americanas fazendo alguns comentários que, provavelmente, ouviram de outros adultos.

Este tipo de sutileza cheia de camadas que convidam o espectador a inferir verdades sobre aquela realidade permeia toda a obra. Os pais, além da fazenda, trabalham numa fábrica de carnes, onde seu trabalho é separar pintinhos recém-nascidos entre machos e fêmeas. Este fato resulta numa fumaça escura que leva a um diálogo entre pai e filho sobre propósito e ética de trabalho, mas que tem um subtexto sobre a impotência da mãe.

Com tais exemplos, fica fácil imaginar a riqueza de detalhes aparentemente escondidos no roteiro ao tratar das variadas relações entre os personagens. Das tensões oriundas da obsessão de Jacob e dos sacrifícios de Monica, passando pelas decepções de David com sua avó e choque de culturas. Neste último quesito, aliás, a maneira com que os membros da família discutem seus gostos por chás e refrigerantes diz muito sobre as diferenças entre quem, de fato, emigrou para os EUA e quem já nasceu lá. Os presentes que a avó traz e as reações da filha e dos netos estão carregadas de informações neste sentido e fazem o espectador imaginar gostos, sons e odores de sua infância.

Com uma família bilíngue, o filme é falado em coreano e inglês, idiomas misturados pelos personagens na mesma conversa. Tal fato levou o Globo de Ouro a classificar o longa como “filme em língua estrangeira”, mesmo sendo uma produção americana. Isso também significa que importantes elementos da narrativa se perdem em traduções. Há uso de pronomes de tratamento em coreano que imbuem a conversa de significados e pesos que não aparecem nas legendas, o que é compreensível, mas uma pena de qualquer forma. As duas línguas também são usadas para fortalecer o senso de isolamento, com alguns personagens tentando se encaixar na sociedade americana, mas sem conexão nativa com a coreana.

Ao explorar camadas entre as relações familiares e socioculturais em tela, Chung revisita e homenageia seu passado e sua família, levando o espectador a presenciar uma jornada que não foi fácil, mas que é parte vital da pessoa que o diretor é hoje. Assim, Chung faz um convite para que cada um analise sua própria história, se permitindo viajar em lembranças nostálgicas para constatar a autenticidade que o passado tem na formação do indivíduo. E tudo isso pode ser resumido em “Minari”, que além do título, é uma erva usada na culinária asiática, levada à fazenda em Arkansas pela avó que viaja com sementes na esperança de que ela possa vingar em terras distantes.

Bruno Passos
@passosnerds

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