Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Pieces of a Woman (Netflix, 2020): o luto e o sagrado feminino

Uma dolorosa história sobre o processo de luto, após a inesperada morte de um recém nascido. Ela é retratada com a beleza de uma forma poética e uma interpretação cheia de verdade e profundidade.

Nas aulas de biologia na escola, é ensinado que o ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre. Que os pais ficam velhinhos e que os filhos os enterram. Esse é o ciclo “natural” da vida. Porém, e quando não é assim? O que acontece quando um ser humano nasce e segundos depois morre? O que acontece com pais que devem comprar um pequeno caixão e enterrar seu bebê? Com essa temática forte e cheia de tabus, o novo filme da Netflix, “Pieces of a Woman”, trata de forma poética e sensível, sem medo de chocar e mostrar o lado terrível do luto parental.

O primeiro ato é aberto e também fechado com um genial e bem elaborado plano único, sem cortes, de mais de 20 minutos do trabalho de parto, feito em casa. Durante sua realização, percebemos o amor entre os progenitores Sean (Shia LaBeouf) e Martha (Vanessa Kirby) e o bebê Yvete, que está para nascer; e a gentileza da parteira Eva, que é uma substituta e, por isso, inicialmente sofre certa rejeição do casal, contudo ganha sua confiança e conduz o parto de modo muito atencioso e humano. Ao longo da sequência, conhecemos os cômodos da casa, que refletem a personalidade dos moradores e o momento presente. Essa escolha de plano único, passa um quê de teatro imersivo (não à toa, já que o filme é inspirado numa peça teatral), que pode ser uma experiência angustiante e até cansativa, mas vale a pena, pois cria um laço com os personagens.

De quem é a culpa por uma morte precoce? Esse questionamento se perpetua durante a narrativa, seja pelo sentimento de culpa, seja pela busca de um culpado, que, juridicamente cai sobre a parteira. Aqui fica mais claro a inteligência da direção ao captar o momento inteiro do parto, pois viramos testemunhas da morte e ao formarmos uma opinião, parte do júri. Tal inteligência se perpetua em várias escolhas.: como os diversos momentos de silêncio, nos quais as imagens e expressões dos atores gritam e revelam emoções mais do qualquer diálogo; e a cenografia fenomenal da casa, que se transforma de acordo com as mudanças do casal e de certa forma também passa por luto (por exemplo, as plantas que começam a murchar e eventualmente morrer). 

Uma escolha igualmente bem pensada é o título: “Pieces” que dizer pedaços e faz total sentido. Conhecemos importantes pedaços da vida de Martha, que é/foi mãe, mas que também é filha e tem problemas com a própria genitora, uma húngara, que sofreu durante a Segunda Guerra e foi um bebê dado como praticamente morto. A relação das duas é cheia de turbulências e, apesar das boas intenções de Elizabeth (Ellen Burstyn),  é uma personagem desafiadora e quer fazer tudo à sua maneira, interferindo negativamente no processo de luto da filha. Também conhecemos o seu “pedaço” como esposa e por fim a sua parte como mulher, como indivíduo único, com medos, desejos. Além disso, acompanhamos o processo em que ela tenta  juntar seus pedaços, após ficar despedaçada com a morte do seu bebê.

Não há reviravoltas inesperadas nem suspense, há uma história de dor e angústia. Porém, sua beleza mora aí, na aparente simplicidade, na existência da dor, do ser e estar. Há uma metáfora com maçãs, que se perpetua ao longo do filme e que no final aparece em forma de macieira, que mais parece uma árvore da vida, mantendo as escolhas poéticas. Uma linda história sobre perda, mas também do ganho de amor incondicional de mãe. Um quadro de um feminino forte dentro de seu momento mais frágil, tudo isso interpretado com esplendor pela atriz Vanessa Kirby e captado com preciosismo único pela direção e pela fotografia. Um longa que pede bis e que muito provavelmente será eterno para quem o assistir.

Maduda Freitas
@MadudaFreitas

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