Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 08 de janeiro de 2021

Wolfwalkers (Apple TV+, 2020): as magníficas camadas do folclore

Animação conta a história de amizade de duas garotas de origem distintas, e acaba revelando camadas que exploram o folclore a história da Irlanda com estupendo 2D e um belo conto sobre liberdade.

Tomm Moore é um diretor da Irlanda do Norte que lançou os longas animados “O Segredo dos Kells” e “A Canção do Mar”, ambos indicados ao Oscar de sua categoria e tratam de temas do folclore irlandês. Em 2020 com “Wolfwalkers“, ele chega a uma trilogia sobre o tema. Lançado pela Apple TV+, o longa conta a história da menina Robyn (Honor Kneafsey), filha do caçador Bill (Sean Bean). Em 1650, eles mudam da Inglaterra para a cidade de Kilkenny, para onde o pai fora convocado pelo Lorde Protetor (Simon McBurney) com o intuito de exterminar os lobos da floresta adjacente à cidade, visto que busca expandir suas terras de plantio.

Bill insiste que sua filha fique em casa, o que é um martírio para seu espírito aventureiro que quer seguir os passos do pai. Neste ponto a obra começa a tecer comentários sócio-políticos-culturais sobre a sociedade da época, que relegava mulheres aos trabalhos domésticos, considerando-as inaptas para serviços como, no caso, de caçadoras. As desigualdades e opressão sofrida pelo sexo feminino revelam um roteiro cheio de camadas ricas e bem exploradas, indo bem além da exploração mágica do folclore irlandês.

Ansiosa para se provar, Robyn escapole da cidade e tem um encontro inesperado com Mebh (Eva Whittaker), uma wolfwalker (caminhante lupina, em tradução livre). Ela se comunica com os lobos, vive com eles e, ao dormir, se torna uma loba. Outra camada bem explorada pelo roteiro é a da história da Irlanda e o extermínio de lobos que ocorreu no país na época, ilustrando que o avanço da civilização era impiedoso com a natureza.

O uso de folclore para contar a história irlandesa é primoroso. Além do já mencionado acima, o longa ilustra a maneira com que o cristianismo foi usado para justificar destruição do mundo natural e a violência que isso poderia exigir. A caça aos pagãos também está aqui, pois a mágica que envolve os lobos e os wolfwalkers é tida como satânica e indigna, incitando ódio que leva o exército local a querer destruir os animais.

A dualidade da destruição do natural em prol do avanço da civilização é outro tema que permeia por toda a obra. Não só na trama em si, mas também na arte. Os traços que representam a natureza são curvos e fluídos, indicando uma harmonia orgânica que é bem contrastada com os traços retos e pontiagudos da cidade. As cores têm importante papel nesse quesito também, com os tons frios e escuros das construções dos homens que destoam dos vivos verdes, laranjas, marrons, vermelhos e amarelos do mundo natural.

Com uma animação aquarelada em 2D belíssima (e que simula bem o 3D quando necessário, dando profundidade aos cenários), o espectador logo é convidado a passear pela floresta com as meninas. Os cenários são ricos, ostentando algo onírico que cativa e encanta. É uma estética visual que inunda os olhos e hipnotiza seu dono. Note como o filme representa o olfato sentido pelos lobos, é delicioso e envolvente.

Produzida pelo estúdio irlandês Cartoon Saloon, o longa ainda possui uma afiada direção (que Moore divide com o estreante Ross Stewart), que soube usar enquadramentos para engrandecer momentos de ameaça, ternura, aventura, tirania e, principalmente, liberdade. Há um inesperado e eficiente uso de split screen em alguns momentos, com a tela se dividindo em até três partes distintas com três ações diferentes acontecendo. Estas cenas não só ajudam a entender a trama, como causa uma certa quebra na narrativa visual que, incrivelmente, não é estranha, chegando a fortalecer o peso de acontecimentos-chave.

Entretanto, apesar de discorrer sobre vários temas, é um filme acima de tudo sobre liberdade. É por ela que Robyn e Mebh logo criam uma amizade e ela é o cerne dos sentimentos das personagens, amarrando todos os temas numa só narrativa que consegue dar peso a todos. A animação das duas é outro show. É vívida, cheia de energia, e é fácil de entender suas emoções por meio de sua linguagem corporal e expressões faciais. Principalmente em Mebh, que tem um cabelo longo e indomado, refletindo sua personalidade energética que esconde medos e inseguranças.

Tomm Moore entrega uma baita obra. Sabendo quando dar dinamismo e quando deixar as cenas paradas, seu filme nos transporta para um mundo encantado, mas real. Explorando o sentimento de liberdade que todo humano quer para si, há ricas metáforas visuais que ilustram onde estão as verdadeiras jaulas e a força necessária para combatê-las. “Wolfwalkers” inspira, emociona e conquista ao enaltecer os anseios dessas meninas e, assim, de todos nós.

Bruno Passos
@passosnerds

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