Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Sou Sua Mulher (Prime Video, 2020): suspense dramático que se constrói nas sutilezas

Parecendo a princípio uma obra que apresenta poucas informações, o suspense "Sou Sua Mulher" cria mistérios e uma forte jornada dramática a partir de sutilezas, subtextos e detalhes.

Em 1970, Jean (Rachel Brosnahan) é casada com Eddie (Bill Heck) e cuida do bebê Harry, levado inesperadamente para casa pelo marido. O cotidiano comum é abalado após o homem trair seus parceiros criminosos. A partir daí, ela precisa fugir com a criança enquanto é perseguida pelos ex-comparsas de Eddie. A premissa de “Sou Sua Mulher“, do Amazon Prime Video, pode remeter às histórias de criminosos e vinganças. Porém, a narrativa propõe uma experiência diferente das expectativas graças à sua protagonista e às incógnitas deixadas pelos acontecimentos.

Primeiramente, o estágio de Jean é o de desconhecimento. Julia Hart (“Miss Stevens“) demonstra isso apresentando a condição da personagem em um contexto machista, levando em consideração as relações com o marido e uma economia narrativa poderosa. Nos momentos iniciais em que está em casa, vemos a mulher ser resumida a um objeto adornado por roupas caras, uma empregada cumpridora de tarefas domésticas e uma mãe zelosa pelo filho – essa caracterização é feita por Eddie desde a abertura, em que ela procura a tesoura para cortar a etiqueta da vestimenta, até a cena do café da manhã em que o homem age como falso provedor cuidadoso. Tais informações vêm dos subtextos na narração em voice over da protagonista e da interação do casal, uma estratégia que indica que as falas significam mais do que aparentam.

Então, o desconhecimento se relaciona com o lugar social imposto às mulheres. Ocupar o papel de cuidadora do lar a faz ficar alienada do mundo dos homens na trama, marcado pela violência do crime, por segredos obscuros e por alianças traiçoeiras. O arco inicial de Jean fica ainda mais evidente em sua jornada de fuga, após o marido não retornar e os companheiros dele exigirem que ela se esconda sem maiores explicações. A necessidade de fugir a coloca em contato com Cal (Arinzé Kene), um sujeito que trabalhava com Eddie, que impõe certas regras de onde deveria ficar e como se comportar também sem contar o que ocorria e o porquê de correr perigo. Assim como nas primeiras cenas, o segundo ato define um estilo de mistério que nos aproxima da personagem, pois sabemos tão pouco quanto ela e as perguntas que temos recebem respostas ou especulações extremamente sutis.

Como a estratégia é deixar Jean (e consequentemente os espectadores) no escuro, as lacunas do roteiro e da decupagem são propositais e não furos ou erros. Ao não saber o que realmente acontece, a protagonista embarca em um percurso instável no qual nada parece sólido ou confiável. Isso se reflete nos diversos abrigos a que precisa recorrer para se esconder e na maneira como os cenários são dispensados como não mais seguros. Em igual medida, muitos personagens cruzam com os caminhos da mulher e se tornam figuras enigmáticas ou passageiras: Cal aparece e desaparece, Evelyn (Marceline Hugot) não dura muito tempo na narrativa e levanta suspeitas, Teri (Marsha Stephanie Blake) parece ser efêmera como Cal e igualmente misteriosa como Evelyn, já Paul (Da’Mauri Parks) e Art (Frankie Faison) cumprem funções pontuais e não parecem ser tão duradouros no filme.

Além de criar um suspense pautado na falta de informações, Julia Hart não se descuida do arco dramático de Jean e integra as duas abordagens mesmo quando a ação poderia parecer mais importante. Desde o início, a personagem é sufocada pelo machismo da época e por cobranças de que não seria “mulher” suficiente para os padrões sociais conservadores. Quando Eddie diz que ela poderia apenas se preocupar com os ovos e não com os óvulos, após a chegada do bebê, quer dizer que sua esposa deveria conciliar os trabalhos de mãe e empregada e que ele seria o único responsável por trazer um filho para eles. Nos momentos em que está com Cal, ela é constantemente lembrada que não sabe cozinhar, acalmar Harry ou inventar uma mentira aceitável para escapar de um policial.

A diretora aproveita a ideia geral dos mistérios evocados pelas incógnitas para construir as sequências de ação ou de tensão. As primeiras podem ser fruto da paranoia de quem não sabe se está a salvo ou quem seriam as ameaças verdadeiras, como se vê na saída apressada de Jean e Cal do hospital para onde levaram Harry por medo de serem cercados, e na refeição de Jean com Evelyn quando a senhora parece suspeita. Já aquelas do fim do segundo ato em diante apresentam ameaças reais e, mesmo fazendo parte de momentos mais explicativos da trama, preservam os segredos e as dúvidas do que acontece e de quem são os indivíduos envolvidos.

Durante a jornada de Jean para descobrir os perigos para si e seu filho, os dramas em torno dela prosseguem e a fazem evoluir como personagem feminina. Se antes era menosprezada, sua trajetória a faz perceber que ela pode ser forte, autônoma e capaz de cuidar de Harry enquanto luta por sua sobrevivência. Novamente, são os detalhes sutis que mostram a evolução: encontra uma música que acalma a criança (inicialmente recitada por ela e depois tocada pela trilha sonora), percebe que não deixar faltar alimento é mais importante do que ser a melhor cozinheira (um alerta aprendido pelo convívio com a família de Teri) e desenvolve habilidades antes inimagináveis (simbolizadas pelo fato de conseguir acender uma fogueira). E como foi jogada num mundo violento, precisa aprender a sair dele e sobreviver segundo suas regras.

Fazendo convergir suspense e drama, “Sou Sua Mulher” oferece elementos para enriquecer sua experiência cinematográfica proposta. A abordagem escolhida para o roteiro confere um brilho especial para uma história que se enfraqueceria se fosse direta nas revelações. A ideia de moldar a narrativa ao princípio da ocultação de informações de um mistério reforça o senso de ameaça e desorientação. E o percurso dramático da protagonista estabelece a perspectiva de que o empoderamento feminino ajuda na sobrevivência em múltiplas dimensões. Basta perceber como na cena final a frase “Não olhe para trás” e o enquadramento fechado na personagem têm tanto a dizer.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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