Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 19 de dezembro de 2020

The Mandalorian (Disney Plus, 2ª temporada): o dilema de uma galáxia confortável

Ao apostar no retorno de figuras conhecidas de "Star Wars", a segunda temporada da série de Jon Favreau e Dave Filoni opta por jogar para o público em vez de expandir o universo da franquia.

O sucesso de “The Mandalorian” é indiscutível. A chegada do Disney Plus ao Brasil em novembro tornou cada vez mais comum entrar nas redes sociais e ver pessoas debatendo sobre a série, memes com a Criança fazendo alguma coisa fofa ou algum dos jargões mandalorianos. Mais que isso, a primeira temporada utilizou-se da liberdade proporcionada pelo streaming da Disney para contar uma história livre das amarras da televisão ou sem a necessidade de algo grandioso como no cinema.

A expectativa do público para a segunda temporada já seria grande naturalmente, mas com todo o sucesso da primeira, Jon Favreau e Dave Filoni sabiam que teriam que elevar o nível. Só que com uma estrutura de ponta para produzir a série e o próprio Favreau escrevendo…, não há muito para elevar. O jeito encontrado para não deixar a expectativa passar em branco foi, então, aumentar. Aumentar o escopo, a quantidade de personagens e de cineastas de primeiro escalão dirigindo. A receita “caseira” da primeira temporada, focada em inovação e simplicidade, parece já não ser o suficiente em um mundo em que todos querem sempre mais.

Seguindo a história do mandaloriano Din Djarin (Pedro Pascal), acompanhamos a jornada desse herói relutante pela galáxia em busca de um Jedi ou alguém que possa treinar a Criança, que agora também tem nome: Grogu. A cada nova aventura, o coração do Mandaloriano amolece um pouco mais, e logo a dinâmica entre ele e Grogu é a de um verdadeiro pai com um filho. Sua postura muda, ele passa a falar mais, questionar suas crenças e seu lugar na galáxia e, acima de tudo, desenvolve um amor incondicional pela criança (agora com letra minúscula). Tudo isso, ele sabe, terá que acabar quando a dupla encontrar alguém disposto a aceitar Grogu como pupilo, o que dá a cada bom momento uma pitada de amargura. Filho se cria para o mundo, mas nem por isso Djarin se deixa abalar ou se recusa a buscar o melhor para o seu.

Assim como na primeira temporada, a estrutura aqui se divide em duas vertentes: os episódios que tratam da trama principal da série e os que trazem tramas secundárias. O segundo tipo normalmente tem a função de dar suporte à trama principal e estofo ao protagonista. Via de regra, apresenta algum personagem novo que logo conquista os corações do público e ajuda o protagonista ao final, já no desfecho da trama principal. Foi assim que conhecemos Cara Dune (Gina Carano), Greef Karga (Carl Weathers), Fennec Shand (Ming-Na Wen), entre outros.

Agora, muitos dos personagens já são conhecidos da maioria do público, mas são frequentemente maiores que o próprio protagonista. Se a primeira temporada tinha seu maior trunfo na dinâmica entre o Mandaloriano, uma versão do pistoleiro sem nome de Clint Eastwood e do samurai sem mestre de Toshiro Mifune adaptada à galáxia de “Star Wars“, e Grogu, agora o brilho de sua armadura reluzente acaba ofuscado pela quantidade de caras conhecidas, sendo a maioria personagens cuja importância para o universo da franquia já é maior que a do nosso protagonista recém-chegado. É o caso, por exemplo, de Ahsoka Tano (Rosario Dawson) e Boba Fett (Temuera Morrison).

Ahsoka e Fett, vale lembrar, ganharão cada um sua própria série no Disney Plus. Naturalmente notícias como essa geram animação entre os fãs, mas é com isso que, aos poucos, a segunda temporada de “The Mandalorian” parece ganhar propósito fora das telas, e a série em sua totalidade deixa de ser uma simples história para ganhar contornos cada vez mais bem definidos de produto em meio à guerra midiática.

Isso leva a outro grande problema: a limitação forçada da história em prol de uma narrativa mais confortável e baseada nestes tais rostos familiares. Com uma galáxia tão vasta e um catálogo tão amplo enquanto franquia, seria surpreendente que “Star Wars” optasse sempre pelos mesmos personagens para seus ápices, não fosse pela repercussão causada pela parcela tóxica e barulhenta da comunidade de fãs. Por mais emocionante que seja ver Ahsoka Tano, Boba Fett e, principalmente, Luke Skywalker (Mark Hamill), os mecanismos que os trouxeram para “The Mandalorian” são os mesmos que rejeitaram filmes com histórias originais, como “Os Últimos Jedi“, e resultaram na decadência da franquia nos cinemas com “A Ascensão Skywalker“. Sendo assim, a utilização de personagens tão queridos aqui passa uma impressão não tão diferente do que foi rever Palpatine (Ian McDiarmid) no último filme da franquia: a de ser uma muleta narrativa.

O grande charme da temporada é justamente quando a série se propõe a diminuir seu escopo e olhar para camadas não tão importantes da galáxia. Enquanto os episódios do ramo principal tendem a ser mais impactantes e gerar mais repercussão, a série brilha quando o assunto são as pessoas normais, os seres simples tentando trilhar seus caminhos pela galáxia. É o caso da dupla de patrulheiros da Nova República Carson Teva (Paul Sung-Hyung Lee) e Trapper Wolf (Dave Filoni), ou da Passageira (carinhosamente apelidada de “Senhora Sapo” pelos fãs), da mesma forma que vilões como Valin Hess (Richard Brake) e o co-piloto do transporte imperial (Thomas E. Sullivan) no último episódio, O Resgate, são tão assustadores quanto Moff Gideon (Giancarlo Esposito). É em momentos assim que a galáxia de “Star Wars” cresce e ganha vida, tornando visíveis as consequências do que acontece na trama principal e nos filmes da franquia.

A parte técnica, como de costume, é um show à parte. A utilização do Volume nessa temporada alcançou um nível novo de excelência, ao ponto de instigar dúvida ao retratar cenários que poderiam muito bem ser reais, como a paisagem do planeta Tython, por exemplo. Tal tecnologia é posta à prova por um corpo de diretores que equilibra experiência com abordagens novas, continuando a tradição estabelecida na primeira temporada. O que causa surpresa é o fato de os melhores episódios, seja em desenvolvimento de narrativa ou mesmo sob um ponto de vista técnico, terem sido dirigidos por cineastas que retornam da temporada anterior, como Bryce Dallas Howard, Dave Filoni e Rick Famuyiwa. Os dois últimos também têm os únicos episódios da temporada cujos roteiros não são de Jon Favreau: Filoni resgata a influência dos filmes de samurai de Akira Kurosawa em A Jedi, e Famuyiwa conta uma história comovente sobre estresse pós-traumático em O Que Acredita.

A temporada toda, no entanto, continua a correr sob a supervisão de Jon Favreau. É dele a história principal e são deles as decisões de qual rumo elas tomam. Um exímio contador de histórias, Favreau eleva a dramaticidade da narrativa à medida que seu desfecho aproxima, chegando ao ponto de mesmo em episódios ditos secundários o que está em jogo sempre dita a urgência das ações do Mandaloriano. Se por um lado isso resulta em momentos marcantes, como a emocionante aparição de Luke Skywalker no episódio final e a despedida do Mandaloriano e Grogu logo em seguida, por outro a série os puxa para a atmosfera grandiosa dos filmes e menos para a história simples da primeira temporada. A própria trilha sonora de Ludwig Göransson, antes tão marcada por toques eletrônicos e instrumentos incomuns, baseia-se cada vez mais em orquestra e em melodias impactantes à medida que a temporada avança.

No embalo da ampliação do catálogo de “Star Wars” no Disney Plus, a Lucasfilm parece ter encontrado em “The Mandalorian” o veículo ideal para promover seus novos produtos. A introdução de personagens impactantes serve à história e traz momentos e experiências inesquecíveis para os fãs mais antigos até os que começaram a se aventurar nessa galáxia tão, tão distante acompanhando o Mandaloriano e Grogu perambulando pela galáxia. Uma presença na série, no entanto, acaba ofuscando as aventuras da dupla, dois personagens tão simpáticos e cheios de potencial, para compor a grande história de “Star Wars”: a dos Skywalker. Em uma galáxia tão grande, com tantas caras novas por ver e histórias diferentes por contas, é um pecado optar sempre pelo conforto daquilo que já conhecemos.

Julio Bardini
@juliob09

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