Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 01 de dezembro de 2020

Critica | O Cemitério das Almas Perdidas (2020): fábula canarinha banhada de sangue

Maior obra de Rodrigo Aragão até o momento, este terror nacional não desperdiça uma gota sequer dos litros de sangue que derrama para contar uma história de colonizadores versus colonizados.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020, estendidas até 29 de novembro.

Rodrigo Aragão é um dos cineastas brasileiros que carregam o ofício do cinema como paixão e exemplo de empreendedorismo. Seu trabalho está dentro de um nicho da área, o cinema fantástico e de terror, pois é onde seu talento como técnico de efeitos e maquiagem se faz necessário. Como realizador, ele tem no currículo obras como “Mangue Negro“, “A Mata Negra” e seu longa com maior orçamento até então: “O Cemitério das Almas Perdidas“.

Existe um universo criativo que permeia o cinema de Aragão. Em seu mais recente projeto, o conceito central está na lenda do livro de São Cipriano, que contém rituais satânicos que conferem poder a quem os realiza. Porém, o autor introduz um vilarejo litorâneo em três momentos do tempo e uma linha narrativa que costura personagens representativos do Brasil – aqui é onde o filme encontra seu valor mais interessante. Índios e colonizadores em conflito cruzam suas próprias doses de sobrenaturalidade pagã e terminam presos no local do título. Suas presenças atormentam moradores de um povoado fundado na região. E quando uma trupe circense chega à vila e provoca um “choque cultural”, vivos e mortos batalham por suas almas.

Na caracterização dos personagens, o realizador se preocupa em representar pessoas de diferentes cores, corpos, origens e idades, e em seguida os deixa com o mesmo tom de vermelho-escuro dos litros de sangue que utiliza em cada cena. A estrutura é de uma fábula de aventura com heróis negros e indígenas combatendo colonizadores europeus e fanáticos religiosos. No entanto, o terror predomina pela estética mórbida do horror corporal e de cenários sombrios. Acima disso, a tormenta dos personagens é amplificada por gritos, grunhidos, gemidos e lamúrias de todo tipo em doses entorpecentes para alguns e incômoda para outros. Não à toa este filme é dedicado a José Mojica Marins, o eterno Zé do Caixão.

Ao repetir colaborações de atores em suas obras além dos claros elementos nacionais e de terror, Rodrigo cria no Brasil o que há de mais próximo de uma antologia como “American Horror Story” de Ryan Murphy. “O Cemitério das Almas Perdidas” possui maior valor de produção que “A Mata Negra“, por exemplo, mas também é mais perdulário nos efeitos. O exagero pode provocar certa dormência no espectador, que deixa de sentir o impacto de cada cena de horror pela sua intensidade. No entanto, existe um mesmo apuro na maneira de contar histórias amarradas, com personagens costurados através do tempo e um romance de tom gótico-brasileiro que mistura brutalidade medieval com demônios comedores de carne.

Sem o objetivo claro de assustar nem de chocar, por mais que sejam algumas das possíveis reações, a mensagem que transparece por trás desta produção é uma demonstração do potencial diverso da cultura miscigenada brasileira para entregar histórias de terror. Como Rodrigo é reconhecido por seu trabalho como técnico, não surpreende que ele tente utilizar tudo que pode neste trabalho, mas é verdade que às vezes “menos é mais”. Se por um lado foi uma oportunidade de fazer um “showcase” de efeitos, também era uma oportunidade de explorar uma fantasia original tupiniquim, e ambos são elementos tão amplos que não cabem em um só filme.

Para quem quer algo diferente no cinema de terror, com o tempero brasileiro e não se importa em levar banhos de sangue pela tela nem se incomoda com o som de pessoas em agonia, “O Cemitério das Almas Perdidas” é uma boa opção. Especialmente para os saudosistas de Zé do Caixão, o trabalho de Rodrigo Aragão representa a virada de uma nova fase do gênero no Brasil. Que venham mais obras originais, pois o país é monumental e, para o bem ou para o mal, nossa rica história ainda pode inspirar muitos contos aterrorizantes.

William Sousa
@williamsousa

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