Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 24 de novembro de 2020

O Segredo de Davi (2018): provocações voyeurísticas do cinema

Filme estabelece desde o início o desafio do público: observar e decifrar o protagonista em uma narrativa sem respostas fáceis e didáticas.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

“A primeira regra dos observadores é se manter escondido para que o observado não perceba”. Essa fala de Davi (Nicolas Prattes) anuncia o desafio proposto por “O Segredo de Davi“: enfrentar a condição passiva geralmente atribuída aos espectadores pela maioria dos filmes comerciais. Em vez de criar uma narrativa confortável e segura com respostas evidentes, o suspense de estreia de Diego Freitas em longas-metragens nos convida a observar o protagonista para montar o quebra-cabeça de uma menta fragmentada.

Basear-se na sinopse para preencher as lacunas da trama pode não ser suficiente. De qualquer modo, ela é porta de entrada para o universo diegético e o personagem principal: Davi é tímido, tem vinte anos, faz faculdade de cinema e adora filmar os outros sem ser notado. Após conhecer Jonatas (André Hendges), um colega mais velho que cursa mestrado, desenvolve um estranho fascínio por ele que o faz iniciar uma vida secreta como serial killer. Além de registrar os assassinatos em sua câmera, também possui motivações enigmáticas para sua violência.

“Quando eu filmo as pessoas sem que elas saibam, é possível descobrir quem são”. A afirmativa do jovem para Jonatas parece ser o convite simbólico para o público tentar conhecê-lo pela observação atenta. Assim, identificamos sua personalidade retraída que mais parece à vontade com sua câmera; a timidez de quem mal se expressa até com os dois melhores amigos; a solidão de quem mora sozinho e vigia a vizinha do apartamento do lado; e o bullying sofrido por conta das ações do colega de faculdade. Nos primeiros momentos, Nicolas Prattes evoca o retraimento de Davi especialmente através da contenção de sentimentos pelo semblante e pela postura corporal. Entretanto, como mostra o plano em que o protagonista está de frente para o computador e tem o rosto dividido por luzes diferentes, ele tem mais de uma faceta a ser interpretada.

Nessa segunda dimensão de sua identidade, o rapaz revela marcas de psicopatia que o fazem cometer os crimes brutais de figuras aparentemente aleatórias. Com o passar do tempo, essa impressão cai por terra porque as vítimas parecem ter uma ligação misteriosa com ele. Seus atos também envolvem a frieza de planejar meios para fugir de possíveis investigações policiais. Diego Freitas então arquiteta uma história de psicopata com toques surrealistas relacionada aos destinos das pessoas assassinadas e à abordagem visual de suas apresentações. Falta apenas controlar os excessos dramáticos da performance do ator, que exagera na fúria e na ironia das suas expressões faciais carregadas e nos sorrisos de canto de boca.

Outro aspecto que percorre esse arco violento diz respeito aos motivos para os assassinatos. Como já acontecia no restante da narrativa, as respostas são substituídas por perguntas ou, no máximo, por pistas das motivações criminosas. A tensão sexual que nunca se concretiza entre Davi e Jonatas pode revelar algo distorcido em seu comportamento? Os flashes de suas memórias de infância insinuam abusos ou tabus durante o crescimento do garoto? Atitudes violentas podem ter sido despertadas por uma criação problemática ou já faziam parte de sua natureza? Esses questionamentos se abrem em um roteiro não tradicional filmado da mesma forma.

Observamos não apenas Davi como também o universo estético que habita. Como estamos diante de uma mente tumultuada, a montagem das cenas se fragmenta e não obedece um padrão linear para intercalar memórias, delírios e acontecimentos recentes – de tanto observá-lo, ficamos tão desnorteados quanto ele sem saber se o que ocorreu em sua trajetória conturbada foi real ou fruto do subconsciente. Além disso, há uma dose de voyeurismo, que se comunica com o rapaz que se relaciona com o mundo através de muitas telas e também simboliza a própria posição do público face à experiência cinematográfica. Quanto à questão voyeurística, seria possível potencializar a estética das telas digitais tornando a perspectiva da câmera nosso olhar para as ações.

Se a confusão mental e emocional de Davi transparece pela fragmentação narrativa, sua dualidade é percebida pela composição visual. Acompanhamos o personagem por espaços iluminados de acordo com lógicas distintas: ambientes em que interage com Jonatas são banhados com luzes neon (a festa para onde vão) ou contrastes de luz (a casa abandonada onde tiram fotos) e cenários que remetem aos crimes ou à intimidade do jovem são sombrios (a própria residência, o apartamento da vizinha e a rua deserta onde comete os assassinatos). As diferenças de fotografia contribuem para a atmosfera de mistério que recobre nossas tentativas de decifrar o personagem.

Em determinado momento do terceiro ato, a narrativa brinca com nossas percepções da trama e das escolhas estéticas do diretor ao ressignificar as atitudes do protagonista e eventuais paralelos entre as vítimas e figuras de seu passado. Em geral, histórias de serial killer são menos ambíguas que “O Segredo de Davi” porque fornecem uma imagem mais direta do assassino, que praticamente não deixa dúvidas de como o filme pode ser experimentado. Por sua vez, o suspense de Diego Freitas abre lacunas e oferece chaves de assimilação para os espectadores, como se quisesse observar nossas reações diante de uma narrativa sem respostas prontas. Afinal, como diz Davi, todos os observadores são também observador por alguém.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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