Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 21 de novembro de 2020

Uma Invenção de Natal (Netflix, 2020): tudo o que 2020 precisava

Netflix acerta com a emocionante produção dirigida por David E. Talbert, entregando muito mais do que se espera de um conto natalino. Com performances de tirar o fôlego, o longa não deixa nada a desejar de um clássico de fim de ano.

O que vem a sua mente quando pensa em um clássico de Natal? Filmes natalinos já foram tão explorados nas telas, passeando por gêneros de comédia, comédia romântica, musicais e até terror. Mas independente do estilo, a tão famosa “magia do Natal”, a generosidade, caridade, o amor e a família sempre estão presentes de alguma forma. “Uma Invenção de Natal” agrega tudo isso numa trama simples, fácil de embarcar, com alta qualidade de produção, enquanto eleva o significado de tudo isso através de uma representatividade incomum para os filmes do gênero.

É o dia mais feliz da vida do inventor Jeronicus Jangle (Justin Cornwell/Forest Whitaker), pois chega por encomenda o ingrediente final que dará vida a sua nova invenção: Don Juan Diego (Ricky Martin), um boneco senciente em forma de toureiro. Porém o vaidoso brinquedo não fica muito feliz ao saber dos planos de Jangle em produzir outros como ele e tentará impedi-lo com ajuda de Gustafson (Miles Barrow/Keegan-Michael Key), o assistente do inventor.

Bastam os primeiros minutos para se render ao longa, que conta com uma exuberante direção de arte e um elenco cativante. A primeira música, como costuma ser em outros musicais de mesmo estilo, transborda energia e conta com o carisma dos atores principais do primeiro ato. Com algumas falas as canções já conseguem vender sua história facilitando o apego pelos personagens.

Para manter a simplicidade, mas sem subestimar o público, as transições entre os atos são feitas com um misto de stop-motion e animação em CGI, um recurso narrativo que avança rapidamente a história sem prejudicar o ritmo. E falando em ritmo, não há uma só música que deixará o espectador na mão. Todas estão distribuídas pelo filme sem deixá-lo cansativo, todas servem a algum propósito e o divertimento é garantido em cada uma. Em uma delas, os atores até brincam com o noção comumente ironizada na vida real de que personagens de musicais começam a cantar “do nada” no meio de um diálogo. Em uma segunda camada, pode até ser interpretado como uma alfinetada em quem costuma tecer essa crítica jocosa, pois o personagem que acha o número musical embaraçoso é uma pessoa amargurada e que perdeu a magia. O resultado disso é uma cena cômica com um timing e sinergia excelentes entre Forest Whitaker e Lisa Davina Phillip.

Contudo a música que mais se destaca é Make it Work, tanto pelos vocais de Anika Noni Rose, que são de cair o queixo, quanto pelos elementos de soul que elevam o nível da canção, além da montagem que brinca com as batidas da música, bater de ferramentas e movimentos de trabalho manual. E para completar, as performances do corpo de bailarinos preenchem os quadros organicamente tornando quase impossível conter a vontade de fazer parte da dança.

Dito tudo isso, é preciso que um espaço neste texto seja dedicado a performance de Forest Whitaker em seu solo Over and Over. Palavras não são suficientes para enaltecer a potência desse ator e é impossível não se emocionar com a verdade que Whitaker põe em cada sílaba cantada. É genial, é de tirar o fôlego e faz refletir se Forest não devia ter mais reconhecimento pelo seu trabalho.

A direção de David E. Talbert, que também roteirizou a obra, fez de uma história simples um trabalho de alto nível e isso é indiscutível. Contudo, podemos ir além e observar a importância de uma produção como essa nos dias de hoje, que não só tem um diretor negro à frente deste projeto com um elenco que traz muita diversidade étnica, mas que também conta com uma menina negra como co-protagonista a partir da segunda parte do filme. E para além de representar corpos, a maneira como essas personagens foram escritas é de extrema importância, pois Journey (Madalen Mills) é uma menina muito inteligente que tem a ambição de ser inventora. Numa sociedade que coloca a mulher negra como uma figura preterida e comumente associa e representa sua imagem como alguém que não pode alcançar certos lugares de importância, a imagem de Journey é inspiradora.

Cabe também ressaltar que valores familiares quase nunca são representados na figura de uma família negra e acima de tudo “Uma Invenção de Natal” é um filme sobre família e sobre ser quem você quiser ser. É com muita naturalidade que esses valores são retratados e à vista de quem está acostumado a se ver representado nos filmes pode ser que isso passe batido – e mesmo assim, ainda é um filme divertido que acalenta e conforta, o que todos nós estamos precisando no momento. Mas no fim, se pelo menos uma criança negra conseguir se ver nos olhos de Journey e se sentir motivada a ser quem ela quiser, este musical terá valido mais que qualquer prêmio que possa vir a receber.

Tayana Teister
@tayteister

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