Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Condado Macabro (2015): homenagem tupiniquim aos slashers

André de Campos Mello e Marcos DeBrito se inspiram nos filmes slashers e no cinema B dos anos 1970 e 1980 para criar uma versão nacional do Leatherface.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Há quem diga que aquele tipo de história de terror com um assassino psicopata mascarado ceifando vidas adolescentes ficou na década de 1980. Porém, continuações, refilmagens, reboots e homenagens continuaram sendo feitos dentro do estilo ao longo do tempo, sendo mais ou menos inspirados. Entre essas possibilidades, “Condado Macabro” homenageia o subgênero na trama e na estética, inserindo ainda traços brasileiros pontuais e sendo bem-sucedido na maioria das referências.

O ponto de partida não tem novidades: cinco jovens alugam uma casa afastada para se divertirem e darem vazão aos hormônios em ebulição. O desenvolvimento também segue rumos conhecidos, quando Theo (Leonardo Miggiorin). Mari (Larissa Queiroz), Beto (Rafael Raposo), Lena (Bia Gallo) e Vanessa (Olivia de Brito) se veem em uma chacina. Para o investigador Moreira (Paulo Vespúcio), o grande responsável seria o palhaço Antonio (Francisco Gaspar), encontrado saindo ensanguentado do local, embora ele afirme ser inocente.

Marcos DeBrito e André de Campos Mello estreiam na direção de longas com uma narrativa não linear. O recurso alterna entre os interrogatórios feitos com Antonio no presente e a estadia dos cinco amigos na casa no passado, contribuindo para definir rapidamente a dramaturgia e o estilo. Enquanto o acusado resiste às pressões do policial e se defende dizendo que assassinos sanguinários invadiram a residência, são dadas pistas pelos diálogos que preparam o terreno para o violento clímax iminente e criam expectativas para o que irá acontecer. Além disso, são momentos ideais para apresentar a canastrice de Moreira (na medida certa para os filmes B graças à sua voz grave) e a expressividade do palhaço, vinda da combinação entre maquiagem e sangue, e no rosto de Francisco Gaspar (o semblante do ator transita muito bem entre emoções positivas e negativas de um personagem imprevisível).

A percepção de filme de “segunda categoria” se sobressai ainda mais quando as cenas se concentram no grupo de jovens. Ele se adequam a figuras típicas dos slashers, que ficam isoladas num lugar distante, não são caracterizadas com tanta profundidade e seguem clichês familiares. Assim, há a “gordinha” que gosta de músicas bregas e sofre bullying; o piadista infame e metido a conquistador sempre interessado em sexo; o “certinho” que não se arrisca e tenta manter os outros na linha; a mulher objetificada que representa desejos sexuais dos homens; e a irmã bonita que atrai o interesse do rapaz insuportável. A dinâmica entre esses personagens se desenvolve com um tom descompromissado e pueril dentro de uma perspectiva sexualizada do subgênero. No entanto, os excessos cômicos de Beto exaurem o espectador, que se sente entediado com o tempo reservado a cantadas ou piadas nada engraçadas.

Nos núcleos mais distantes da delegacia e da moradia alugada, a produção escancara as reverências a títulos como “Sexta-feira 13“, “Rejeitados pelo Diabo” e, principalmente, “O Massacre da Serra Elétrica“. Este último é o mais presente por trazer também irmãos psicopatas, que vestem máscaras repulsivas, usam armas como serras e facões e estão cercados pelo gore de sangue e vísceras de humanos e animais. Embora existam elementos que remetem ao trabalho de Tobe Hooper, Marcos DeBrito e André de Campos Mello introduzem suas próprias marcas diferenciadoras na motivação dos personagens. As referências não param por aí, já que os cineastas criam sequências nas locações do Centro-Oeste brasileiro que dialogam com o clássico do terror – por exemplo, é o que se nota na composição imagética da casa dos irmãos, na fotografia saturada de amarelo e nas cenas finais desoladoras e poderosas dramaticamente.

Os diálogos com abordagens do terror também fazem com que a narrativa se aproprie de “convenções” de filmes trash. Nesse quesito, as homenagens são direcionadas às obras do gênero de “segunda categoria” dos anos 1970 e 1980, que já haviam sido referenciadas no projeto “Grindhouse” de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. É a proposta que justifica falhas na textura das imagens com riscos na película e mudanças bruscas na coloração; indicação clara de marcas d’água no alto do quadro para assinalar a troca de rolos de filmagem do projetor; jump cuts inesperados para marcar passagens repentinas de um plano a outro como se trechos dos rolos tivessem se perdido; e slow motions para ressaltar cenas violentas ou sensuais. A articulação entre slasher e cinema B confere uma ambientação tensa e cômica num balanço apropriado para uma história baseada em referências que não se leva a sério.

Entretanto, o que se inicia como uma qualidade divertida se torna uma irregularidade no decorrer da narrativa. A atmosfera e a preparação de terreno para a deflagração da violência se estendem por muito tempo, sendo preenchidas por “spoilers” no interrogatório de Antonio e piadas dispensáveis de Beto. Quando enfim os momentos mais gráficos chegam, a produção reforça o caráter de pastiche a partir de efeitos visuais nem um pouco naturalistas – quem está familiarizado com o subgênero consegue antever a ordem das vítimas e aguardar mortes cada vez mais impactantes. Nesses instantes, é adicionado um “jeitinho brasileiro” na forma como se desenvolvem os arcos dos palhaços Antonio e de seu colega Bola, englobando uma malandragem distorcida e os medos de palhaço que alguns têm (especialmente por conta das sensações dramáticas, cômicas e assustadoras que a maquiagem pode gerar).

Levando em consideração os objetivos e as propostas, “Condado Macabro” não pode ser avaliado seguindo critérios realistas ou expectativas fora do universo estético do qual o filme faz parte. Provavelmente, seus efeitos sejam mais expressivos quando consideramos suas inspirações e caminhos pretendidos pelas homenagens. Pode não ser perfeito – pelos excessos cômicos de Beto e o adiamento da violência explícita -, mas ser chamado de um derivado sem identidade não caberia. Afinal, a ideia é propor um exercício de terror que reconheça seus antepassados e dê seus toques especiais, como se percebe numa conclusão equilibrada entre referências a “O Massacre da Serra Elétrica” e decisões ambíguas próprias.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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