Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 07 de novembro de 2020

Christabel (2018): doce poesia que transgride imposições sociais

Inspirado em um clássico poema narrativo da literatura inglesa, "Christabel" conquista nossa atenção com o mistério provocativo em torno da personagem Geraldine.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Christabel” é um longo poema narrativo escrito em 1797 e 1800 por Samuel Taylor Coleridge com grande rigor formal e originalidade temática. O ritmo meticulosamente pensado se complementa às questões místicas e femininas que transcendem de suas palavras, criando assim uma obra influente na literatura e no cinema. Tal influência fica demonstrada, por exemplo, no filme “Christabel” de Alex Levy-Heller (“Jovens Polacas“), adaptado à realidade brasileira sem perder de vista a ideia de que o rompimento com o status quo é execrado pelo conservadorismo social.

Se originalmente a poesia se passava na Inglaterra, a adaptação toma liberdades para levar a história para o Cerrado brasileiro. Ali vivem Christabel e seu pai em uma pequena casa na zona rural, sozinhos até a chegada misteriosa de Geraldine. Ao se hospedar no local, a jovem abala as estruturas familiares tradicionais de pai e filha com sua sede de liberdade e seus segredos ocultos.

Alex Levy-Heller bebe da fonte original para estabelecer sua unidade estética também através de um rigor formal. O diretor encena a dinâmica entre os personagens principais com um estilo bastante sóbrio e cuidadoso (talvez considerado lento demais pelos espectadores mais habituados ao cinema comercial, porém adequado ao poema base), evidenciado nos enquadramentos e nos movimentos de câmera: muitas cenas transcorrem com planos estáticos emoldurando as situações dramáticas, aspectos específicos da dramaturgia são realçados com planos detalhes e deslocamentos laterais extremamente sutis da câmera ressaltam a interação dos personagens. A sobriedade se justifica tanto para desenvolver a ordem vigente naquela casa com a frieza entre pai e filha quanto para fazer avançar gradualmente uma atmosfera de mistério.

É através de Geraldine que a narrativa se desenvolve de modo misterioso e não convencional. Desde sua aparição misteriosa numa floresta, aparentemente fugindo de homens que a perseguiam, ela impacta e interfere nas vidas dos outros dois personagens – tudo parece acidental a princípio, mas com o tempo as dúvidas sobre suas reais intenções se multiplicam. Leonel inicia como um sujeito rude, acostumado ao trabalho braçal na roça e a ser servido pelas mulheres enquanto não consegue demonstrar afeto pela filha; em seguida, se abre um pouco mais às lembranças do passado e aos desejos sexuais quando interage com a jovem recém-chegada. Contudo, o homem parece manipulado por Geraldine para satisfazer suas necessidades, algo pontuado pela sólida presença em cena do ator Julio Adrião.

Mesmo que Leonel tenha sido influenciado, quem mais se transformou foi a protagonista. Inicialmente, ela é encaixada numa condição de dona de casa que faz as tarefas domésticas para o pai e sonha em formar família com marido e filhos (inclusive, precisa esperar pacientemente pelo retorno do namorado embora ele não seja nada confiável). Com a influência de Geraldine, Christabel é levada a questionar os planos para seu futuro em diálogos que deixam se uma vida sem liberdade, presa a uma residência e restringida às cobranças sociais de uma mentalidade machista seria realmente satisfatória. Além do texto, há uma dinâmica forte entre as atrizes Milla Fernandez e Lorena Castanheira composta por toques, gestos e olhares, capaz de criar uma relação sugestivamente sensual – essa sensação aparece numa refeição com sopa, num banho improvisado e no deslizar de um vulto por trás de um varal de roupas.

O convívio entre as duas mulheres escancara como o status quo pode ser opressivo em mais de um aspecto. A ordem social imposta como natural exige para as mulheres uma posição de submissão em relação aos homens, lhes nega o direito ao prazer sexual e condena relações românticas fora da heterossexualidade. Se os padrões sociais forçados aparecem de múltiplas maneiras, a narrativa demonstra como a transgressão também pode vir de muitos caminhos: o desapego de Geraldine por normas sociais, que se reflete em sua paixão pela natureza; o desabrochar sexual de Christabel, que se evidencia em suas descobertas emocionais; e as mudanças na decupagem de determinadas cenas, que suspendem a sobriedade anterior em favor de um estilo onírico e enigmático capaz de misturar realidade, sonho e desejo.

Retratar possibilidades de transgressão não é o único nível em que o filme se concentra. Apesar de expressivo, ele não necessariamente incluiria as adversidades encaradas pela protagonista e os discursos negativos feitos pelo status quo sobre atitudes de rebeldia. A construção estética também pontua em muitos momentos como a sociedade pode não compreender Geraldine e, assim, desqualificá-la. Em relação a essas representações, é sugestivo quando a câmera enquadra morcegos no teto; é simbólico quando duas sequências caracterizam a frase de Geraldine sobre os pesadelos serem os sonhos em que você acorda no meio; e é metafórica a alusão à misteriosa jovem como uma serpente, inclusive com uma canção que remete ao pecado original. Discretamente, a obra insinua como a personagem pode ser vista por uma perspectiva conservadora como um pesadelo que leva ao pecado.

Por um lado, Geraldine pode ser entendida como uma ameaça à ordem estabelecida, por outro, como um estímulo à libertação. Nesse sentido, Christabel atravessa uma jornada de enfrentamento das amarras impostas pelo conservadorismo social – como grande símbolo desse arco está o momento em que a protagonista descobre verdadeiramente seu corpo na relva. As últimas conexões entre as duas mulheres sintetizam a transformação necessária para a personagem central, mas também a natureza fantástica de Geraldine e nossa limitação para nomeá-la. Pena, portanto, que esse não seja o desfecho do filme para potencializar ainda mais o efeito transgressor de vidas que não se deixam reduzir a papeis esquemáticos.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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