Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 04 de novembro de 2020

Cabrito (2020): conjunto de apelos vazios

"Cabrito" é um terror que busca gerar choque e repulsa em muitos aspectos, embora sua execução nem sempre produza tais efeitos expressivamente.

As primeiras sequências de “Cabrito” podem sugerir um tipo de terror muito diferente daquele que predomina na narrativa. Em dois momentos, planos fixos situam o ambiente do interior de Minas Gerais e acompanham uma procissão religiosa, a partir de uma atmosfera de horror psicológico. Porém, o desenrolar do filme dispensa essa sensação inicial e investe no gore e no choque de temas e imagens que percorrem toda a trama, embora não seja uma abordagem tão bem articulada à sua dramaturgia.

Dividindo-se em três partes, a produção segue um homem (Ramon Brant) assombrado por sua família. Quando jovem, sofria com um padrasto abusivo (Samir Hauaji) que tornou todos canibais, no capítulo “Nem o pai morre, nem a gente almoça”. Já mais adulto, tem seu pior lado despertado pela religiosidade distorcida da mãe (Fernanda Thurann), no segmento “Ninguém come antes da mãe rezar”. Por fim, sequestra seu primeiro amor e reproduz o comportamento desumano a que foi submetido em suas relações familiares, no capítulo “A sagrada família”.

O diretor Luciano de Azevedo sabe trabalhar temas angustiantes de seu roteiro, através de uma história que atravessa gerações e impõe os mesmos problemas para muitos personagens, em especial o protagonista. Violência, fanatismo religioso, miséria e vazio emocional seguem sua criação e influenciam sua vida adulta posteriormente, tendo pai e mãe como figuras simbólicas desses aspectos: ele exala brutalidade em sua aparência monstruosa de cicatrizes no rosto, no desrespeito à fé da esposa e nos maus tratos ao filho; já ela acredita que orações resolvem qualquer adversidade e explicações religiosas dão conta das frustrações do filho. Da maneira como o cineasta explora questões tão agressivas o terror é desenvolvido, fazendo sempre que os conflitos desemboquem em cenas violentas de humilhação, canibalismo e assassinatos – nessas passagens, a narrativa se alterna entre a sugestão e a revelação do horror.

Mesmo abordando tópicos aflitivos como disparadores do terror, há elementos dramáticos subestimados para o desenvolvimento da trama. Por mais que a violência e a religião sejam fatores cruciais para a dinâmica dos personagens, o roteiro aponta aspectos secundários que seriam interessantes de explorar com maior intensidade: referências à tortura da ditadura militar para a crueldade do pai, influências de um cenário social desolador para as ações dos personagens e carências emocionais prejudiciais para relações amorosas. Como são apenas citados discretamente, tais pontos deixam de oferecer discussões e possibilidades ricas para ambientação opressiva sobre o protagonista. Consequentemente, prefere-se a revelação do horror à preparação gradual da imagem chocante.

Nesse sentido, Luciano de Azevedo está menos interessado em desenvolver o ambiente até o momento em que a violência é deflagrada, pois está mais dedicado aos impactos causados por essa brutalidade. Para concretizar essa opção, o diretor lança os espectadores dentro dos instantes em que o ponto de saturação dos conflitos ultrapassou os limites e reações brutais são desencadeadas. No entanto, o efeito dramático pretendido também apresenta desvantagens, como a impressão de que não é necessário se importar com os personagens e de que o choque é buscado pelo apelo em si mesmo e menos na sua função narrativa. Na prática, então, a escolha de partir direto para uma série de clímax leva a uma desorientação que distancia ao invés de convidar para entender o que acontece.

Em certa medida, a sensação de choque pelo choque não fica evidenciada apenas pela construção dramática falha e dos personagens. Escolhas formais de linguagem também levam a pensar que a narrativa trabalha suas imagens anestesiando o público, afinal muitas decisões soam bruscas ou pouco inspiradas. É assim que a fotografia não aproveita o contraste entre luz e sombras, simplesmente escurecendo os cenários; que a montagem apresenta planos chocantes abruptamente por querer encadear uma série deles sem preparação (inclusive com flashbacks que insistem na mesma ideia traumática sem nuances ou variações); e que o desenho sonoro tem dificuldades de mixar ruídos diegéticos e diálogos para serem todos compreendidos.

Seria questionável, entretanto, afirmar que não existam escolhas visuais capazes de gerar efeitos expressivos. No primeiro capítulo, o enquadramento fixo no rosto do pai enquanto apresenta um monólogo tenso sobre o que ocorre fora do quadro na cena de tortura com o filho; no segundo, um plano estático de uma suposta refeição do protagonista enquanto as imagens ao seu lado são inquietantes. Os dois casos exemplificam como a perturbação emocional pode vir muito mais do acabamento estético das imagens do que do acúmulo de cenas agressivas por si mesmas. Por conta disso, os primeiros segmentos são mais bem resolvidos, principalmente aquele em torno da juventude do personagem por criar ao redor do pai uma aura opressora e violenta que intimida sempre quem está em cena.

Não por coincidência, os capítulos se enfraquecem à medida que o filme avança. “Cabrito” pode até criar uma ambientação sugestiva de interior e de isolamento, porém o desenvolvimento na vida adulta daquele homem aposta em rumos menos marcantes do que seu início prometia. Faltam maior refinamento à dramaturgia – personagens mais desenvolvidos e uma trama mais centrada – e uma percepção sensível da fonte do terror – algo diferente do uso apelativo do violento. O terço final chamado “A sagrada família” é o mais representativo de como existe tanto esforço em chocar e em gerar repulsa que o público fica anestesiado em meio a estímulos inexpressivos, que propõem impactos apenas pontualmente.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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