Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 26 de outubro de 2020

On The Rocks (Apple TV+, 2020): um sucessor espiritual de Encontros e Desencontros

Sensível comédia sobre uma mulher em crise por conta de um casamento desconfiante refaz a parceria entre a diretora Sofia Coppola e o ator Bill Murray, evocando aspectos do maior sucesso da autora.

O nome Sofia Coppola gera expectativas naturalmente. Não só por pertencer a uma família prodígio em Hollywood, mas também por sua filmografia equilibrada e bastante autoral – que já lhe rendeu muitos prêmios desde sua estreia como diretora com “As Virgens Suicidas“- , e que inclui sua maior obra até o momento: o oscarizado “Encontros e Desencontros“. Dezessete anos depois desta produção estrelada por Bill Murray e Scarlett Johansson, a cineasta lança “On The Rocks” pela plataforma de streaming Apple TV+. Com um tom ainda mais inclinado para comédia, a diretora repete a parceria com o ator, no que pode ser interpretada como uma sequência espiritual do sucesso de 2003.

A heroína dessa vez é Rashida Jones. A atriz interpreta Laura, uma escritora em crise que cuida das duas filhas enquanto o ausente marido Dean (Marlon Wayans) se dedica integralmente à própria carreira. Sua atitude positiva não é suficiente, entretanto, para afastar uma suspeita crescente de que Dean talvez a esteja traindo. Sem amigos com intimidade para conversar sobre o assunto, resta à Laura pedir conselhos para seu pai bon-vivant e bem de vida Felix (Bill Murray).

Como autora, a cineasta é adepta a buscar na própria vida inspirações. As semelhanças entre ela e Laura existem não só na caracterização física, mas nos valores familiares, nas filhas e, possivelmente, no tipo de relação com seu pai. A escolha de Rashida como protagonista também traz coincidências íntimas: ambas as artistas são filhas de magnatas do entretenimento, respectivamente, Quincy Jones e Francis Ford Coppola. Logo, pode-se atribuir decisões bastante pessoais em torno do filme, o que oferece uma luz interessante aos conflitos internos de Laura e como talvez eles estejam relacionados com a própria diretora, assim como foi em “Encontros e Desencontros“.

Falando na produção de 2003, é inevitável tentar buscar suas sombras no projeto mais recente. Para começar, Bill Murray não é propenso a buscar diferentes papéis – ele costuma contornar o mesmo tipo nuclear do canastrão, mulherengo e de humor particularmente voltado para si. Dessa forma, o Felix tem similaridades com o Bob da obra anterior, assim como o Peter Venkman de “Os Caça-Fantasmas” e o Phil de “Feitiço do Tempo“. No entanto, as relações entre o ator e suas companheiras de cena nos filmes de Coppola são paternais, compreensivas, divertidas e, quando o momento permite, íntimas e comoventes. A diferença quanto à participação do comediante nestes dois filmes é que, apesar de rico e interessante, seu personagem mais recente é coadjuvante em relação à jornada de Laura.

Já Laura e Charlotte (de “Encontros e Desencontros“) são indiscutivelmente alter ego de Sofia em fases diferentes de vida. Até o sotaque e o jeito de falar das três são semelhantes. Porém, por maior responsabilidade que tenha, o trabalho da autora é limitado pelo desempenho das atrizes. E é aqui em que seu último trabalho começa a se distanciar da expectativa. Rashida Jones não apresenta a mesma desenvoltura com o texto que Bill Murray, por exemplo. Até a pequena (e irritante) participação de Jenny Slate demonstrou mais consistência na função. Por justiça, a atriz havia acabado de perder a mãe pouco antes do início das gravações e isso pode ter influenciado negativamente na sua performance.

A comédia da trama deveria se apoiar nas reações constrangedoras da personagem principal, principalmente em relação às situações provocadas pelo pai à medida que ele a convence que Dean realmente pode estar vivendo outra vida fora do casamento. No entanto, Bill Murray não só rouba as cenas e entrega uma figura multifacetada e mais interessante, como aproveita para mostrar seus dotes de cantor sempre que tem oportunidade.

Também é através dos diálogos com Felix que o espectador, tomando a mesma posição reflexiva de Laura, recebe as ideias de Coppola nas entrelinhas. A partir da obsessão do velho playboy sobre como homens e mulheres se relacionam ao longo da história humana, a cineasta argumenta sobre como uma mulher deveria se posicionar perante um relacionamento saudável. Nuances ao lado, é claro que a moral leva à transformação da protagonista. Porém, os detalhes do passado e das personalidades de Laura e Felix, que pautam seu relacionamento e explicam porque eles são como são, estão no texto do filme de maneira elegante e envolvente.

De certa forma, enquanto pai e filha tentam investigar a vida oculta de Dean, o público pode se interessar muito mais pela história da dupla e como um homem atencioso e galanteador como Felix influenciou a introspectiva e hesitante Laura. É a riqueza que está no roteiro, mas não tanto na direção de Coppola. Talvez sua protagonista em “On The Rocks” seja uma versão mais velha de Charlotte de “Encontros e Desencontros“, que por sua vez pode ter visto em Bob a mesma vibração do insuperável Felix. Se um longa é realmente sequência espiritual do outro, não importa. Ambos possuem atmosfera e tonalidades distintas. A única certeza é que poucos artistas oferecem uma janela tão próxima para sua psique como Sofia Coppola.

William Sousa
@williamsousa

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