Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 18 de outubro de 2020

Love Me Tender (2019): o estranho enquanto elemento cômico e reflexivo

Longa de Klaudia Reynicke sobre mulher com agorafobia aguda usa da inocência de sua protagonista e do humor para falar sobre o encontro do ser humano com o amor próprio.

O medo é uma reação natural e involuntária do ser humano, capaz de ensinar muito sobre nossa forma de pensar e interagir com o mundo. Agora o que acontece com quem sente medo de ter medo? Não é possível controlar tudo que vai acontecer na vida de alguém. Deixar tudo rolar sem saber o que vai se passar e sem ao menos se planejar é uma ideia apavorante para algumas pessoas. O que o medo de ter medo pode ensinar sobre nossas próprias fraquezas e forças? Este é o mote de “Love Me Tender”, longa da diretora suíça-peruana Klaudia Reynicke.

Seconda (Barbara Giordano) é uma mulher que sofre de agorafobia aguda, ou seja, ela tem um medo paralisante de sentir medo ou de ser exposta a qualquer situação que a deixe desconfortável fora de sua residência ou sozinha. Por conta disso, ela passa seus dias apenas mudando de cômodo dentro da casa em que mora com seus pais e um gato que ela detesta. O problema aumenta quando Seconda é abandonada repentinamente: primeiro, sua mãe morre e, logo em seguida, seu pai foge de casa pois não aguenta lidar com a situação da própria filha. É assim que ela se vê cada vez mais encurralada a enfrentar seu pavor se quiser sobreviver – ou morrer de uma vez para não lidar com sua fobia.

Acompanhar a jornada de Seconda é agonizante. Quanto mais consumida pelo seu pavor do desconhecido, mais desesperada se torna sua existência. Giordano realiza um trabalho incrível ao trazer o desconforto não somente às atitudes da personagem, mas também à sua linguagem corporal. Em “Love Me Tender”, o corpo de Seconda é uma prisão, e conforme os recursos da personagem vão se esvaindo, tanto ela quanto o público se encurralam emocionalmente nos cantos do apartamento abandonado da moça.

Inclusive, o filme trabalha muito e com precisão o conceito do corpo enquanto forma de encarceramento da mente. Desde a maneira com que a câmera acompanha Seconda se arrastando para viver trancada no conforto que criou para sustentar sua fobia, até o jeito do qual ela se veste quando é preciso ter o mínimo de interação humana ou com o mundo lá fora.

Mas nem só de desespero se faz o filme. “Love Me Tender” sabe usar o estranho e a comédia a seu favor, não como um quebra-gelo ou para tirar sarro da agorafobia, mas como um catalisador da tensão que a condição de Seconda proporciona. Até mesmo momentos grotescos de decadência da protagonista passam por um filtro de humor que torna todo o contexto da vida daquela pobre coitada em algo que gera apego à personagem, mas sem necessariamente sentir dó dela.

Ainda que, no começo, o filme se prolongue mais do que deveria para construir uma ambientação para a doença de sua protagonista, “Love Me Tender” encontrou no esquisito e no engraçado um jeito envolvente de mostrar como o ser humano usa seu próprio corpo como uma cadeia, um método de reclusão para não lidar com aquilo que não se pode controlar: a vida em si. E Seconda vai descobrindo, como todos nós, que as amarras da mente vão se desfazendo até que ela descubra que a porta daquela prisão nunca esteve verdadeiramente trancada.

Jacqueline Elise
@jacquelinelise

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