Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 18 de outubro de 2020

#RapaduraRecomenda – A Voz do Silêncio (2016): bullying não é frescura

Longa da diretora Naoko Yamada traz uma sensível e humana história sobre bullying, vergonha, redenção e perdão.

Baseado no mangá homônimo de Yoshitoki Oima, “A Voz do Silêncio” é um longa animado produzido em 2016 pelo estúdio Kyoto Animation. Ele conta uma história de bullying, mas o que pode aparentar ser um melodrama sobre a destruição psicológica que uma vítima desse tipo de ataque pode ter, se revela uma bela obra sobre comunicação, culpa, perdão e depressão.

Disponível na Netflix, a história começa quando Shoko (Saori Hayami) chega na sala de aula da nova escola para onde se transferiu. Ao se apresentar, se revela surda, pedindo aos colegas que usem um caderno para se comunicar com ela, e compartilha que está feliz e empolgada perante as potenciais oportunidades e amizades. Um dos meninos da sala é Ishida (Miyu Irino), que vê nela um alvo fácil para brincadeiras de mal gosto e passa a zombar da condição da menina, caçoando sua maneira de falar e até mesmo arrancando os preciosos – e caros – aparelhos de auxílio auditivo.

Aqui já cabe elogios a um dos grandes acertos do filme. A maneira como ilustra que algo que começa como uma simples “brincadeira” pode galgar níveis mais sérios muito rapidamente é desconcertantemente real, principalmente ao ilustrar a crueldade com que adolescentes podem tratar seus colegas, muito disso advindo de pressões sociais para se enturmarem. Qualquer um que já esteve numa situação similar consegue se identificar.

Este ponto de partida vem logo após um flash forward, onde vemos o protagonista, uns anos mais velho, contemplando o suicídio, e mostra algo que já pode pegar o espectador de surpresa quando lê a sinopse do longa. O foco do filme é no agressor, não na vítima. Ao não tratar dele como um vilão malvado unidimensional, mas sim como um humano cheio de camadas e falhas, logo se estabelece uma conexão com alguém que está profundamente traumatizado pelo mal que causou.

O bullying que ele causa chega num ponto em que o professor – relapso quanto às agressões e lidando com a situação de maneira simplória e errônea – acaba apontando o dedo para Ishida como único culpado, fazendo com que o resto da turma se volte contra ele, fazendo com que ele sinta na pele o que causou e ilustrando como jovens podem se voltar uns contra os outros muito facilmente quando não são preparados para lidar com sentimentos complexos sobre si próprios.

Logo, o filme pega a plateia pela sua própria hipocrisia. É bem provável que o sentimento inicial de que ele merece sofrer pelo que fez venha, mas ao ver Ishida sofrer o bullying que tanto praticou e sentir satisfação por isso, será que também o espectador não agiria de maneira igualmente desumana? Com a montagem alternando entre pontos na linha do tempo, vemos o protagonista isolado e em depressão, incapaz de formar conexões com outros humanos, consumido pela vergonha, culpa e medo de sofrer mais. É uma obra que leva a autoanálise.

Ao mesmo tempo, o longa mostra os efeitos das agressões em Shoko. Constantemente pedindo desculpas, ela se sente culpada por não poder ouvir e também começa a mergulhar numa dor de si própria absolutamente injusta. A maneira com o que o filme consegue trabalhar tanto sofrimento sem ficar melodramático é louvável, é tudo tão real e palpável que as dores são facilmente compartilhadas por empatia.

Devastado pela culpa, Ishida procura redenção. Ele começa a aprender linguagem de sinais na esperança de se comunicar com Shoko e levar positividade para sua vida. Isso não é nada fácil para ele, que parece nunca ter aprendido a se comunicar com outros se não fosse por meio de zombaria. Agora precisa disso e não só não sabe o que fazer, ele não tem nem certeza se merece conexões humanas ou simples diversão. O próprio diz que não sabe o que “amizade” significa, e em seu arco narrativo, sua busca por uma resposta não falha em emocionar.

Há artifícios visuais interessantes. Ishida vê as outras pessoas com um X na cara, uma maneira de ilustrar sua incapacidade de se conectar com outros. Parece um artifício exagerado no começo, mas vai sendo tão bem usado e resulta numa cena final com impacto tão grande que vale a pena. Outro acerto da diretora Naoko Yamada é a boa variação de planos, ao mesmo tempo oferecendo dinamismo visual e espelhando os sentimentos de Ishida. Depressivo e envergonhado, ele só olha para o chão, e há momentos em que se acompanha o mundo por sua perspectiva, colocando o espectador em seu lugar.

A alta qualidade da animação em si também rende cenários ricos em contexto. Conhecer as vidas familiares da dupla principal oferece elementos de peso para ilustrar suas almas. Além disso, há cenas em que o que é expresso pelos olhos se torna algo verdadeiramente especial numa obra desenhada.

As consequências das ações dos protagonistas se refletem em vários quesitos e as construções de personagens deixam claro que esse tipo de situação nunca é tão simples como se imagina. A vida não é maniqueísta. O resultado é uma emocionante jornada de amadurecimento e perdão, que por vezes tem que vir primeiramente de si próprio. Da ignorância do bullying à montanha-russa de emoções de tentar expiar seus pecados salpicados de inseguranças, incerteza e vergonha, é uma obra cheia de humanidade, onde pessoas tentam se sentir melhores consigo mesmas – sempre algo fácil de se relacionar.

Em tempos quando ainda se ouve que antigamente não havia bullying e que depressão se cura na porrada, é um alívio saber que há pessoas e artistas com sensibilidade o bastante para discorrer sobre os profundos efeitos psicológicos que ambos podem ter. “A Voz do Silêncio” acolhe vítimas de bullying e valida seus sofrimentos, praticamente as abraçando e dizendo que não existe frescura na dor de ter passado por essas agressões e injustiças que buscavam rebaixá-las. Ao mesmo tempo, discorre sobre o poder de cura do perdão e de verdadeiras e carinhosas amizades.

Bruno Passos
@passosnerds

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