Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 07 de outubro de 2020

Vigiados (2020): observando um atraente exercício de terror

Dave Franco mostra seu potencial como diretor em seu primeiro longa metragem através de uma condução criativa e de um terror que se revela gradualmente.

De certa forma, a estreia de Dave Franco na direção de longas-metragens pode ser pensada como uma faceta de metalinguagem para o cinema de terror. “Vigiados” chega ao catálogo da Amazon Prime Video, colocando os personagens num ambiente vulnerável de vigilância e falta de privacidade, mas ele não para por aí. A produção também deixa os espectadores num ciclo de observados e observadores, que brinca com nossas reações a cada mudança no roteiro e no estilo narrativo.

Inicialmente, trata-se da história de dois casais que alugam uma casa à beira-mar, aparentemente perfeita. Porém Charlie, Michelle, Mina e Josh começam a suspeitar que o dono do local pode estar espionando-os através de câmeras escondidas. A partir daí, o fim de semana de diversão se transforma em um pesadelo no qual se veem expostos a segredos e perigos inesperados. Dessa proposta inicial, Dave Franco perpassa diferentes elementos do plot e subgêneros do terror.

No primeiro ato, a narrativa lança pistas do que pode acontecer mais adiante na interação dos personagens e aponta rumos nem sempre a serem seguidos com o objetivo de surpreender o público. Logo, podemos imaginar que Taylor seja o grande antagonista, já que o dono da residência se desentende com os protagonistas e se porta como um sujeito desprezível e racista; que o suspense contenha críticas sociais por conta da discriminação sofrida por Mina em razão de sua origem árabe; ou que a encenação possa ser simples com planos e enquadramentos convencionais para apenas situar as cenas. Apesar das aparências, o filme faz questão de se reinventar à medida que transcorre, observando o impacto que suas transformações poderiam provocar.

As primeiras surpresas aparecem quando os casais são desenvolvidos de maneira a transparecer os backgrounds e conflitos dramáticos. Charlie e Mina são sócios de uma empresa em crescimento e namoram, respectivamente, Michelle e Josh. Os dois homens são irmãos. Trabalhando os quatro personagens para fazer com que nos importemos com eles, o texto estabelece um vínculo arriscado entre Mina e Charlie e algumas razões para o estremecimento dos dois namoros – são intrigas, traições e segredos do passado e do presente que conferem peso e identidade a todos enquanto se deparam com riscos crescentes. É também nesse núcleo que os espectadores podem começar a se sentir como observadores, assumindo o ponto de vista do vilão que observa à distância os protagonistas em seus momentos mais íntimos.

Ao mesmo tempo que a ameaça se aproxima cada vez mais, outras mudanças preenchem a produção a ponto de novamente surpreender com o caminho escolhido pelo diretor. A trama apresenta um caráter paranoico maior ao inserir o medo de perderem a privacidade e terem seus passos vigiados, impondo o estilo de thriller tanto para os protagonistas quanto para os espectadores imersos naquele universo. Assim como o enredo adiciona outra camada (É Taylor que os vigia? O que podem fazer quanto a isso?), outros estilos cinematográficos são acrescidos: de um lado, o filme de cabana em uma residência isolada, de outro a história de invasão domiciliar. Por sua vez, os dois são atualizados para uma versão contemporânea, na qual há uma belíssima casa alugada em serviços como Airbnb, além da invasão ocorrer através de aparatos tecnológicos instalados secretamente.

Por conta dessas transformações, constrói-se um suspense com traços de terror que combina as sensações perturbadoras desses gêneros e uma estrutura dramática moldada pelos conflitos dos personagens. O público pode se espantar com a evolução da narrativa e com sua capacidade de sugerir direções que não serão escolhidas para desenvolver enquanto cria outras possibilidades novas e orgânicas. Entre as recriações observadas, também é pertinente verificar que a construção visual não seria apenas simples como se imaginava, já que a fotografia representa a ideia da tecnologia como uma ferramenta de invasão doméstica. Em momentos específicos observamos as cenas a partir da perspectiva da câmera clandestina instalada na residência, como se estivéssemos no lugar do vilão monitorando suas vítimas.

Não satisfeita com os elementos variados já inseridos, a obra trabalha a tensão do segundo para o terceiro ato de modo crescente. Ao adotar o estilo slasher, Dave Franco novamente surpreende com a escalada da violência de um vilão interessante digno de se querer conhecer mais e com uma ambientação ainda mais inquietante – muitos recursos são empregados para gerar aflição frente às suas aparições súbitas para atacar, como o mistério de se deparar com ele escondido em cômodos da casa e a desorientação de estar vulnerável a um psicopata na escuridão e na névoa da noite. Além disso, as sequências brincam ainda mais com as perspectivas de observador e observado ao nos levar para a visão do antagonista e depois das vítimas.

Após atravessarmos uma hora e meia de surpresas, novos rumos abertos e uma fusão de estilos e elementos dramáticos, “Vigiados” ainda se encerra com um epílogo que muda consideravelmente o ponto de vista da narrativa. Nesses momentos, o jovem cineasta mais uma vez demonstra seu bom gosto em revelar um pouco mais da ameaça sem desfazer o mistério criado sobre sua identidade. É um desfecho capaz de aumentar a curiosidade (e por que não imaginar um universo ampliado?) e também fechar o ciclo de uma curiosa metalinguagem em que presenciamos como o cinema é um constante movimento de observar e ser observado.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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