Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Estado Zero (Netflix, 2020): retrato doloroso sobre os refugiados

Produção da Netflix patina ao contar a história de sua personagem central, mas captura com precisão e veracidade a tragédia daqueles que buscam uma nova vida longe de seu país.

Segundo os dados mais recentes divulgados pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), o número de pessoas fugindo de guerras, perseguições e conflitos superou em 2018 a incrível marca de 70 milhões. Cenas tristes como a de famílias, homens, mulheres e crianças empilhadas em barcos rumo a um destino incerto foram e podem ser vistas com frequência nos últimos anos. Sem vislumbrar um horizonte positivo, as previsões ainda indicam que o número de pessoas desesperadas por um lugar onde sejam tratadas com dignidade vai aumentar ainda mais. Tendo o drama dos refugiados como pano de fundo para uma história guiada por um caso real, “Estado Zero”, minissérie da Netflix, oferece ao espectador um olhar genuíno e comovente acerca dos anseios dos exilados, sem deixar de notar a apreensão e inquietude daqueles que servem ao sistema.

Escrita por Tony Ayres e Elise McCredie, e co-produzida por Cate Blanchett, cuja participação na série é pequena, porém magnética, esta produção australiana acompanha a trajetória de quatro indivíduos dentro do fictício Centro de Detenção Barton para imigrantes. Em busca de abrigo após deixar o Afeganistão com a família, Ameer (Fayssal Bazzi) vai parar em Barton após uma fuga mal sucedida. Desejando uma vida melhor para sua esposa e filhos, Cam Sandford (Jai Courtney) aceita um emprego na Korvo, grupo que faz a segurança do centro de detenção. Clare Kowitz (Asher Keddie) também chega a Barton, mas com a dura missão de gerenciar as crises internas e administrar a liberação dos vistos de proteção para os refugiados. Por último, Sofie Werner (Yvonne Strahovski) é uma jovem aeromoça levada à Barton após ser apanhada com uma identidade falsa.

Partindo de um conflito contemporâneo de muita relevância, a minissérie desenvolve uma estrutura narrativa extremamente envolvente, que consiste em seguir os passos de cada uma das figuras apresentadas. E todas merecem destaque. Em seis consistentes episódios, “Estado Zero” alimenta o desejo do público pelo momento em que as histórias de seus personagens irão se entrelaçar, sem que este perceba que o roteiro engenhoso e emocionante de Ayres e McCredie não está preocupado apenas com uma possível dinâmica entre seus protagonistas, mas atento principalmente às individualidades deles. Observar a transformação de Ameer, Cam, Claire e Sofie durante a estadia na prisão é um dos trunfos da produção, já que o roteiro desenha personagens cheios de nuances, assimiladas de maneira orgânica pelos atores que conferem ainda mais autenticidade aos seus papéis.

Embora conte com excelentes atuações, dramas convincentes e que o espectador, naturalmente, pode vir a se sensibilizar com uma narrativa mais do que a outra, é impossível deixar de notar que a série oferece a Sofie um protagonismo maior. Primeiro porque ela desfruta de mais tempo em cena e, como consequência disso, seus conflitos são abordados de forma mais ampla. Segundo, porque a trajetória dela é levemente inspirada na biografia de Cornelia Rau, jovem residente permanente australiana que foi detida ilegalmente pelo programa de detenção obrigatório do governo australiano. Não seria um problema se não fosse uma distração. Sem menosprezar o trauma que a leva a Barton (e é tudo muito grave), ao focalizar no incidente de uma legítima cidadã australiana, a narrativa automaticamente diminui a história de Cam, Claire e Ameer, estes realmente afetados pelo drama dos refugiados.

Além do trabalho primoroso do elenco, impulsionado por Emma Freeman e Jocelyn Moorhouse, que se revezaram na direção dos seis episódios, “Estado Zero” se destaca também pelo olhar cuidadoso aos coadjuvantes que englobam os núcleos principais. Dos refugiados que protestam em cima do telhado por melhores condições até o homem que não perde as esperanças de estar reunido com sua família novamente. Da senhora que, há anos esperando pelo seu visto, foi capaz de – simbolicamente – criar raízes em Barton através de uma plantação, até o senhor que ao lado de sua maleta jamais se move também a espera do dia em será um cidadão. E por que não os seguranças que vivem constantemente pressionados pelo sistema enquanto outros se aceitam como subservientes. “Estado Zero” é uma minissérie para ver e refletir. Para se emocionar e sofrer com o descaso do ser humano em relação a ele próprio.

Renato Caliman
@renato_caliman

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